Dezembro de 1999. Eduarda, de nove meses, não para de chorar e está com o pescoço rígido e inclinado para o lado, até quase tocar o ombro esquerdo. A mãe a leva até uma clínica: “Mau jeito dormindo”, dizem os médicos antes de mandá-las de volta para casa. Dias depois a situação da criança se deteriora. Surge um caroço do tamanho de um ovo no pescoço e lesões na coluna cervical. Diagnósticos desencontrados – câncer, histiocitose X –, tratamentos cirúrgicos e quimioterápicos mergulham a vida da família pobre em desespero e lhes impõe uma rotina de peregrinação por clínicas e hospitais. Mãe e pai abandonam seus empregos para cuidar do bebê, as contas atrasam e eles se afundam em dívidas que chegam a 20.000 reais. A doença da filha foi o ponto de partida que levou Antônio Bonfim Lopes, então um trabalhador responsável por uma das equipes de distribuição da revista com a programação da Net, a se tornar o Nem, chefe do tráfico da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior favela da América Latina.

 

A história de Nem é contada no livro O Dono do Morro: Um homem e a batalha pelo Rio (Companhia das Letras), do jornalista inglês Misha Glenny. O autor, que participa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2016, se encontrou diversas vezes com o ex-traficante, preso desde 2011, no presídio de segurança máxima de Campo Grande, onde aguarda julgamento em oito processos. Ele já foi condenado a 16 anos e oito meses de prisão por tráfico de droga e formação de quadrilha. Na obra também foram ouvidos moradores, amigos e inimigos de Nem, policiais, políticos e o secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame.

Mas de volta à pequena Eduarda: quem emprestaria 20.000 reais para um casal de desempregados moradores de um cômodo de cortiço na favela? Antônio, a dois dias de completar 24 anos, recorre à única pessoa disposta a fazer esse favor: Luciano Barbosa da Silva, vulgo Lulu, o chefe do tráfico da Rocinha e uma das principais lideranças da facção criminosa Comando Vermelho (CV). Antônio sobe o morro ao encontro do capo, e explica a razão pela qual precisa do dinheiro: “Minha filha vai morrer se eu não fizer nada. Eu venho trabalhar pra você. É a única forma de conseguir te pagar”, relata no livro. Subiu a favela como Antônio, desceu como Nem, apelido de infância que agora foi adotado pelos traficantes. “O que você faria no meu lugar?”, indaga ao autor.

Nem começa como segurança de uma das bocas de fumo da Rocinha. Sua inteligência e moderação fazem com que ele galgue rapidamente os degraus da organização criminosa e se torne braço direito de Lulu. Sob o comando do patrão os índices de violência na Rocinha despencam para patamares equivalentes aos de bairros de classe média da zona sul do Rio. Lulu, que se considerava “um empresário”, costumava dizer que não queria guerra “porque guerra é ruim para os negócios”. Misha o chama de um “ditador esclarecido”: “ele entendia que o dono do morro deveria criar um círculo virtuoso que assegurasse o sustento da favela, devolvendo parte dos lucros à comunidade e criando um clima de crescimento econômico”.

Mandar polícia não adianta. Tem quatro ou cinco pra tomar meu lugar se me prenderem ou matarem

O clima de paz e desenvolvimento na favela começa a azedar em 2004, quando a cúpula do CV ordena que Lulu divida o comando da Rocinha com Eduíno Eustáqui Araújo Filho, vulgo Dudu. “Ele era um estuprador, coisa que não se admite na favela”, afirma Nem, no livro. Lulu se insurge contra a ordem e se alia a outra facção, os Amigos dos Amigos (ADA). O que se segue é um período de guerra na comunidade, com os soldados de Eduíno tentando tomar o comando do morro à força. O confronto faz com que o Batalhão de Operações Especiais, o temido Bope, acabe entrando no jogo. Lulu é morto pelos policiais e o caos se instala.

A favela é tomada por sucessivas lutas pelo poder e trocas de comando, até que Nem assume a chefia da Rocinha. Sob sua gestão os soldados do tráfico são orientados a não extorquir ou ameaçar moradores (infratores são punidos com a expulsão do morro), menores de idade são vetados na organização criminosa e o comércio de crack é proibido. A tradição implementada por Lulu de oferecer assistência econômica aos moradores é fortalecida: “Durante seu período no poder, Nem constrói um campinho de futebol para a comunidade, paga viagens de moradores ao Nordeste para reverem a família, banca tratamentos médicos e providencia cestas básicas para os mais carentes”, escreve o autor.

A Rocinha com o bairro de São Conrado ao fundo.
A Rocinha com o bairro de São Conrado ao fundo. G. A.

 

A expertise em logística de Antônio, adquirida no mercado de trabalho formal caiu como uma luva no mundo do crime organizado. Sua visão de empreendedor do tráfico fez com que, em pouco tempo, a favela atendesse por 60% da demanda total de cocaína do Rio de Janeiro. De acordo com estimativas do setor de inteligência da Polícia, a quadrilha movimentava entre 10 e 15 milhões de reais por mês.

Nem – também chamado de Mestre na comunidade – não se importava em deixar que os integrantes da facção abandonassem a vida do crime para trabalhar no mercado formal. Em 2010, em conversa com este repórter publicada na revista Carta Capital, o traficante elogiou as obras do Programa de Aceleração do Crescimento na Rocinha, e disse que perdeu “uns 30 soldados”, que pediram para deixar a ADA e ir trabalhar nas obras. “Nem sequer pensei duas vezes e liberei os caras. É esse tipo de ação que precisa acontecer para combater o crime. Dar oportunidade, esperança. Mandar polícia não adianta. Tem quatro ou cinco pra tomar meu lugar se me prenderem ou matarem”

Sob sua gestão os soldados do tráfico são orientados a não extorquir ou ameaçar moradores (infratores são punidos com a expulsão do morro), e o comércio de crack é proibido

Na reportagem publicada na revista, o traficante chega até mesmo a fazer um mea culpa com relação a seu papel na distribuição de drogas no Rio. “Às vezes um gerente meu chega e fala que fulano está ficando boladão [fora de controle, nervoso] de tanto cheirar. Aí eu penso: porra, se isso tá acontecendo a culpa é nossa. É o nosso produto que ele está usando”. O universo das armas de fogo, que fascinam o universo dos jovens soldados do tráfico, também nunca “fez a cabeça” de Nem: “Odeio arma. Quando era soldado do tráfico, tempos atrás, eu morria de vergonha de passar na frente das senhoras da comunidade que me conheciam desde criança segurando um fuzil.”

Sob seu domínio a Rocinha se torna definitivamente cool, recebendo shows de artistas famosos como o rapper norte-americano Ja Rule e realizando sua própria parada do Orgulho Gay. Com a redução da violência no local, jovens de classe média começaram a frequentar os bailes funk da favela, e o comércio de drogas decola. “Não era uma democracia”, admite Nem. “Mas ao mesmo tempo não era uma ditadura, porque eu sempre explicava meu raciocínio aos moradores”, afirma o ex-traficante em seu relato a Misha.

O fim do reinado

Sua prisão é envolta em mistério. Alguns arriscam dizer que ele queria ser preso para finalmente sair da vida do tráfico

Até pouco antes de ser preso, em 2011, as únicas acusações feitas contra o chefão eram por tráfico de drogas, armas e formação de quadrilha, algo raro em uma cidade que ganhou fama por seus traficantes homicidas. Pouco antes da detenção, foi acusado de participação na morte de duas jovens que desapareceram na comunidade, algo que ele nega. “Durante os cinco anos de Nem no poder correram muitos boatos de homicídios e execuções (…) Com frequência a mídia o apresentava como matador indiscriminado (…) mas não foi apresentada prova alguma”, escreve o autor.

Sua prisão é envolta em mistério. Ocorreu às vésperas da implantação de uma Unidade Policial Pacificadora na Rocinha, e muitos acreditam que ele tentava fugir das garras da polícia. Alguns arriscam dizer que ele queria ser preso para finalmente sair da vida do tráfico. O fato é que ele foi encontrado em uma blitz na saída do morro no porta-malas de um carro de luxo com maletas de dinheiro – possivelmente para subornar a polícia. O episódio quase acabou com troca de tiros entre policiais militares, civis e federais, todos querendo se apropriar da prisão do maior traficante do Rio.

O livro também traz histórias que beiram o surrealismo. Como quando PMs sequestraram Chico-Bala, o macaco de estimação de Nem, e exigiram 75.000 dólares de resgate. Ou então quando o chefão pediu que seus soldados entregassem um estuprador para a polícia, e ao chegarem na delegacia os agentes de plantão queriam cobrar 10.000 reais para prender o violador: “Em que tipo de mundo estamos vivendo quando temos que pagar a polícia para prender criminosos?”, questiona Nem.

No início do livro, ao se deparar com relatos contraditórios sobre o traficante – “a imprensa o tratava como sanguinário e quase todos os moradores o adoravam” -, Misha questiona se Nem era “a aranha ou a mosca” na teia de intrigas, corrupção, tráfico e violência na qual o Rio de Janeiro estava enredado. No final, conclui: “Ele era os dois”. Em tempo, a pequena Eduarda se recuperou da doença, e hoje é uma adolescente saudável.