Dia de Finados evoca a nossa finitude. Pensar na “irmã morte corporal, da qual nenhum ser vivente pode escapar”, como cantou Francisco de Assis (1182/1226) em seu magistral “Cântico das Criaturas”, é antídoto contra a vaidade, o  orgulho e a ostentação – defeitos tão em voga nesses tempos de individualismo máximo. Mas é tempo também de lembrar da morte dos outros. Pensar nos que se foram por algum tipo de violência, mesmo que não os conheçamos, é exercício de alteridade, de solidariedade.

Assim, quero convidá-lo(a), paciente leitor(a), a refletir, por exemplo, sobre a morte trágica dos 358 somalis, vitimados por um violentíssimo e covarde atentado do grupo Al Shabab, ainda neste outubro. A destruição letal quase não foi mencionada na imprensa mundial e nacional. Vidas pobres, negras, africanas não contam? A Somália, onde uma terrível seca vitimou, há alguns anos, 250 mil pessoas, não faz parte do nosso planeta?

Proponho que você se coloque no lugar das famílias que, diariamente, têm um ente querido seu levado pela brutalidade da violência no Brasil. Em 2016, houve um aumento de 17,5% na morte de policiais (56% deles negros) e de 26% nas vítimas fatais de intervenções policiais (76% negros), diz o Anuário da Segurança Pública. Não há um dia sequer em que não saibamos de alguém que saiu de casa, para tocar sua vida, quem sabe cheio de planos alegres para um futuro não muito distante, e não voltou. Exercício de amor é “sentir na própria carne”, ter sensibilidade para quem se vê, subitamente, privado do filho, da parceira, do pai, da mãe, do(a) amigo(a). Não pode ser normal!

Lembre-se dos pais das crianças e dos adolescentes com a vida ceifada precocemente na creche em Janaúba (MG) e no colégio em Goiânia (GO). Não se trata de recomendar uma lembrança mórbida, carregada de luto e dor, mas de um pensamento que impulsione à ação. Para que cada um, à sua maneira, ajude a construir uma sociedade na qual desatinos como esses, perpetrados por pessoas desamparadas de afeto, sejam reduzidos, até desaparecer – ainda que só na época dos nossos tataranetos.

A morte provocada também mostra sua face sombria na natureza, da qual somos parte (consciência biológica que muitos ainda não têm). Mãos humanas, movidas a ganância, acenderam o fogo que devastou quase 30% da Chapada dos Veadeiros! “As araras voavam doidas, desesperadas, ao verem as chamas se aproximarem de seus ninhos e filhotes”, diz Leonilton Ferreira, gerente de uma pousada em São Jorge, porta de entrada para o Parque Nacional (OESP, 26/10/17).

Incêndios destruíram instalações e veículos do Ibama e do ICMBio em Humaitá, no sul do Amazonas. De novo a agressora ação humana, para que a morte do rio Madeira e a exploração predatória dos garimpos ilegais e das madeireiras clandestinas prossiga.

Como não considerar como “roteirista macabro” dessa trama toda um governo que decreta a mineração em área até então protegida (Renca) e baixa uma portaria reduzindo os controles contra o trabalho escravo?

A morte, às vezes, entra devagarinho na vida da gente. Em outras ocasiões, vem súbita, como brutal ruptura. É preciso estar atento e forte para enfrentá-la, em suas mil e uma formas. Nem sempre é possível derrotá-la, mas é necessário acreditar que, apesar de tudo, a vida vence. Nós, com nosso corpo perecível, nos eternizaremos nas generosas causas de justiça, igualdade e paz que abraçarmos.

*Professor de História da UFRJ e deputado federal