Viva o dissenso! A boa surpresa veio da França! Depois de termos assistido, nos últimos anos, a um processo de nivelamento de diferentes mulheres sob o rótulo de “vítimas de uma sociedade falocrática”, vimos algum sinal, vindo do lado de lá do Atlântico, de que podemos levar nossas vidas de professoras, autoras, funcionárias de repartições, domésticas, arquitetas, engenheiras, donas de casas, atrizes ou quaisquer outras vidas, sem lembrarmos, o tempo todo, de que somos mulheres e devemos estar atentas aos menores gestos do sexo oposto que possam exalar um qualquer desejo de dominação.

 

O que o manifesto das artistas e intelectuais francesas veio trazer à tona semana passada, sob a feliz síntese do “direito a importunar”, foi, no meu entender, uma porta aberta para refletir sobre uma opressão da qual pouco se fala: aquela de que são vítimas os que não tomam as agendas da moda como razão de suas existências. O manifesto permite perceber uma tentativa de resgate das nuances das boas relações entre os sexos opostos, mas, acima de tudo, é uma reação à onda de simplificações em curso, por lembrar que as relações, quaisquer que sejam, não estão desprovidas de jogos de poder, e que estas não estão necessariamente pontuadas pela opressão.

 

O novo feminismo ou “feminismo vitimista”, como tem sido chamado, assumiu, sobretudo nos últimos anos, o papel messiânico de vingador das violências contra a mulher, a de hoje e a de ontem. Paradoxalmente, essa guerra justa contra a violência de gênero, potencializada pelo poder de reprodução das redes sociais, pela necessidade de visibilidade das celebridades e subcelebridades e pela banalização das mensagens rápidas e axiomáticas, estimulou execuções violentas e sumárias no mundo virtual, com graves consequências no mundo real dos supostos algozes.

 

Nesse mundo das ideias feitas e facilmente compreensíveis, bem como de destinatários pouco afeitos aos textos longos e analíticos, a discordância, sem dúvida, ofende. Os discordantes são, em geral, como se tem visto no âmbito até das universidades – talvez principalmente aí –, atacados não por suas ideias, mas por seu sexo, sua religião, sua cor, sua proveniência ou seu estatuto social. A onda da vitimização, que se estende muito para além da relação homem e mulher, fabrica opressores da mais diversa ordem. Só do ano passado para este, vimos um galã nacional, que por décadas se manteve em moda, entrar na mira; um jornalista, de qualidade inquestionável, receber uma condenação sem grande direito ao contraditório e um ator de série de sucesso internacional ser afastado de suas atividades, para mencionar uns poucos casos. Mas foi o dedo acusatório das divas da indústria cinematográfica americana que veio quebrar o silêncio daqueles que se incomodam em ver o comportamento oportunista e sensacionalista de alguns transformar exceções em regra e, de tanto generalizar e aplainar diferenças, pôr em risco uma causa legítima, o combate à violência contra a mulher; ou seja, ações menos graves, denunciadas todo o tempo, fazem as mais graves parecerem banais. Valerá a pena conferir a assediadores, galantes, conquistadores, chatos ou inconvenientes, a todos eles, estatuto semelhante ao do estuprador? Para o bem de quem? De quais mulheres? Não de todas certamente, afinal, não queremos nós nos identificar como categoria una e indivisível, como algumas querem fazer crer. Entre as mulheres, a propósito, as bandeiras podem ser tantas quanto os rótulos que queremos dar aos nossos amigos ou inimigos do sexo oposto.

 

No discurso que ganhou forma atualmente, respaldado na comiseração pelos fracos e silenciosos e sustentado por esquemas interpretativos que não escondem o seu maniqueísmo, as conquistas das mulheres desde o século XX são insignificantes, dado que a “violência simbólica” – tornada familiar nos estudos de Bourdieu – ainda seria reiterada em instituições e saberes que reproduzem a “visão androcêntrica” do mundo: a família, a escola, o estado, a igreja, a língua, a biologia, a história, e por aí vai. Para aqueles que julgam que esta é a forma por excelência da desigualdade e o maior problema da sociedade contemporânea, devendo ser o foco maior de toda denúncia, a solução parece ser começar do zero. Mas quais seriam os novos parâmetros? A igualdade? A diversidade? A inversão de papéis? A suspensão utópica de quaisquer parâmetros organizativos prévios? Ou importa, por hora, apenas denunciar e condenar?

 

Se a violência contra a mulher é hoje, parafraseando Simão Bacamarte, um continente e não uma ilha, como querem nos fazer crer as que aderiram ao #metoo ou ao #mexeucomumamexeucomtodas, ainda assim, para o bem comum, de homens e mulheres, é importante não perdermos de vista as balizas, as nuances e as sutis diferenças das formas de relacionamento, sob o risco de, por força da banalidade e da incapacidade de se propor formas viáveis de convivência entre os humanos, o combate se restringir ao limbo das redes sociais.

 

Susani Silveira Lemos França é Professora Livre-Docente em História Medieval da Unesp/Franca.