Tão diversas quantas as etnias indígenas são suas visões sobre o mundo, reivindicações e formas de resistência. Mas há elementos que aproximam povos de norte a sul do país. “Hoje, são 305 povos que existem dentro do Brasil já contatados, e em todos os povos a reclamação é a mesma: que a água está acabando, que as grandes empresas e fazendeiros estão retirando a água dos nossos rios, dos nossos mananciais”, afirma o representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Júnior Xukuru.
Neste dia 7 de fevereiro, Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, a Agência Brasil escutou representantes de várias etnias sobre essa luta que, além de motivada pela necessidade de acessar um bem essencial, tem, para os índios, uma dimensão existencial. “A água é a veia da mãe Terra, é o sangue da mãe Terra, é quem dá pulso e quem dá vida”, relata Júnior Xukuru, que mora na Reserva Indígena Recanto dos Encantados, no Distrito Federal.
Apesar da importância, ele diz que a escassez de água em diversos estados e o interesse em territórios têm levado empresas e governos a buscarem extrair água das terras indígenas, pois muitas preservam rios, nascentes e outras riquezas naturais.
Reintegração
Situação desse tipo ocorreu no Ceará. Lá, a crise hídrica levou o governo estadual a formular projeto que prevê a retirada de 200 litros por segundo de água do manancial existente na área de proteção ambiental (APA) intitulada Lagamar do Cauípe, a fim de abastecer municípios da região metropolitana de Fortaleza e grandes indústrias que existem nas proximidades do local, como o Complexo Industrial e Portuário do Pecém.
Os índios anacés protestaram. Em parceria com a Defensoria Pública do Estado e da União, ingressaram com uma ação popular na Justiça Estadual do Ceará. Na liminar que pediu a suspensão da obra, a Defensoria Pública argumentou que o impacto sobre as comunidades tradicionais que vivem na área desde os séculos 17 e 18 não foi considerado.
Liderança daquela comunidade, o cacique Roberto Anacé conta que a retirada da água afeta “muito, desde um plano físico como espiritual, pois no Cauípe há uma espiritualidade do nosso povo Anacé, e físico devido ao avanço da água do mar que poderá saliniza nossas cacimbas”. As obras chegaram a ser barradas, mas uma nova decisão acabou liberando a intervenção, na última semana de janeiro.
Uma ordem de reintegração de posse levou à retirada dos índios do local. Ontem (06), o governo estadual inaugurou a Reserva Indígena Anacé, que abrigará quatro aldeias: Baixa das Carnaúbas, Currupião, Matões e Bolso. A criação da reserva foi colocada como condicionante para a construção de uma refinaria no local, projeto que acabou sendo cancelado.
“Hoje, o povo só pode observar, por ser proibido de entrar no que era nosso”, lamenta o cacique.
Rio Doce
É o que também vivem indígenas que moram nas proximidades do Rio Doce, em Minas Gerais. Eles não têm mais o contato que possuíam com o Watu, nome dado por eles ao rio, que restou imerso em lama após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. “Eu não sei precisar para as pessoas o que é este momento que nós estamos passando, porque ainda está descendo lama, o rio ainda está sofrendo com isso, não estancou essa destruição”, afirma Geovani Krenak, morador da Terra Indígena Krenak, localizada às margens do Rio Doce.
Além de fonte de água e alimento, o rio, na tradição do povo Krenak, é sagrado. A cada início do período de chuvas, os indígenas iam ao Rio Doce e tocavam em suas águas no ritual intitulado atorân, que significa purificação espiritual. “Nós temos o elemento água como um elemento sagrado”, diz Geovani Krenak, morador da Terra Indígena Krenak, às margens do Rio Doce, em Minas Gerais.
Logo após o rompimento, o abastecimento da terra indígena restou prejudicado. Ainda hoje, dois anos depois da tragédia, eles continuam sem poder beber a água do rio ou praticar o ritual. “A gente está sem fazer algo de mais sagrado que o nosso povo fez durante milênios”, diz Geovani, afirmando que os índios têm feito mobilizações para cobrar a recuperação do rio.
Impacto ambiental
Geovani alerta que a luta pela água não deve ser feita apenas pelos povos indígenas: “nós somos talvez os últimos defensores do meio ambiente. Nos mantivermos firmes na defesa do território, do meio ambiente, e eu vejo que isso tem acontecido com outros povos, mas se a sociedade não despertar que essa luta dos povos indígenas não é só para os povos indígenas, que é para todos os povos tradicionais e para as pessoas que vivem na cidade, em um prazo de 15 a 20 anos a gente vai ficar sem água”.
Nurit Bensusan, assessora do Instituto Socioambietal (ISA) e especialista em biodiversidade, concorda. De acordo com ela, os índios têm uma visão sobre terra, água e outros elementos da natureza que beneficia toda a sociedade. “Mesmo que, de uma forma não proposital, a contribuição que esses povos acabam dando é fundamental, porque, ao preservarem partes do território brasileiro, mantendo a cobertura vegetal e os recursos naturais, eles acabam criando as condições para termos um ciclo hidrológico que garante abastecimento para todos nós”, explica.
A situação contrasta com o que a especialista diz ter ocorrido em grandes cidades, onde a mudança de ocupação do território e o intenso uso de recursos naturais inviabiliza esse ciclo. No Distrito Federal, local em que vive, ela diz que a ocupação de todo o território, muitas vezes com asfalto, impede que a água das chuvas volte aos lençóis freáticos. Sem a manutenção desse ciclo e dos processos que permitem a preservação e recarga dos mananciais de água, a água falta não apenas em determinado território, mas em todo o país.
Nurit defende que, além de apoiar a luta indígena pela preservação das águas, é preciso conscientizar o conjunto da população sobre a situação climática e promover políticas. Ela cita, por exemplo, ações para reduzir o desperdício tanto nos sistemas de distribuição nas cidades quanto na indústria agrícola, setor que consome 70% das águas do país.
Para isso, os povos indígenas também podem ser fontes de inspiração. “Eles têm uma leitura diferente sobre o uso da terra e da água. Um jeito de olhar para isso de uma forma que a gente poderia chamar de mais sustentável, mais racional, porque pensa os sistemas naturais de uma maneira integrada, muito diferente da maneira que a gente está acostumado”, afirma.
Outro lado
A Agência Brasil entrou em contato com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para saber se os processos de reconhecimento de terras indígenas e de demarcação levam em consideração o valor da água para as diferentes etnias. Também questionamos se a Funai acompanha o caso dos povos Krenak e, de forma geral, a situação da garantia de água para os índios. Até a publicação desta matéria, contudo, não foram enviadas respostas.
A Fundação Renova, responsável por políticas de recuperação do Rio Doce, informou à Agência Brasil que as ações de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), já receberam recursos de R$ 3,2 bilhões.
Um dos eixos de ação destacado pela fundação é a manutenção da qualidade da água na bacia do Rio Doce. De acordo com ela, têm sido efetivados monitoramento e tratamento da água do rio, que afirma que hoje, após tratamento, tem potabilidade comprovada; recuperação de nascentes, que totalizarão 5 mil até a conclusão do trabalho; e ações relacionadas ao reflorestamento da região, entre outras.