O ensino médio brasileiro mais uma vez chama atenção, pois perdeu quase dois milhões de matrículas segundo o censo de 2017.
A professora Marília Spósito é autora do clássico O povo vai à escola. Neste livro, que se tornou referência, a autora demonstra como o povo conquistou mais vagas públicas para a expansão do ensino médio em São Paulo a partir da década de 1950.
A autora expôs uma verdadeira “dialética da conquista”, uma vez que a ampliação do acesso se dava pela pressão popular, com novos atores políticos entrando em cena como, por exemplo, mães pobres pressionando deputados e autoridades com poder para sancionar a liberação de recursos.
Essa ampliação de vagas foi na época ostensivamente combatida pela grande imprensa de São Paulo, que produzia seguidos editoriais “alertando” a classe média a respeito dos “riscos” que a escola pública corria com a “chegada do povo”.
O povo foi à escola, a ampliação da oferta se fez e aquilo que era objeto de resistência e preterição, uma vez oficializado se tornou matéria discursiva, com políticos disputando a paternidade das “vagas concedidas”.
Mas se eram vagas advindas da luta política, conquistadas, arrancadas, sua concretização expunha outras assimetrias. Se não foi possível resistir à pressão por mais vagas, foi possível entregá-las com grande precariedade material e com indisfarçável projeto de esvaziamento da docência, fazendo com que muitas vezes aqueles espaços escolares já principiassem com sucateamentos de toda ordem.
Entre aquele momento e este radiografado pelo censo, a oferta de vagas ampliou-se e tornou-se inconstante a estabilização de qualidade material, à medida que em todo país tornou-se possível encontrar equipamentos educacionais os mais diversos, entre essas escolas de ensino médio, ora com satisfatório nível de infraestrutura, ora com condições físicas desastrosas de tão precárias.
Há cinco anos começávamos a festejar a diminuição no número de matrículas no ensino médio noturno, porque era possível constatar que esse decréscimo fazia parte de um processo no qual um número maior de jovens estava conseguindo manter-se no ensino diurno com o respaldo familiar, sem precisar, portanto, estudar e trabalhar.
Mas essa situação já ficou para trás. O censo revelou déficits estruturais em toda a estrutura de ensino, da educação infantil ao ensino médio, e este se mostrou em situação muitas vezes insustentável.
Desde quando o professor Luiz Pereira, da Universidade de São Paulo, fazia seus preciosos estudos sociológicos sobre as interações e os conflitos entre a escola e a cidade, sabemos que dados numéricos precisam ser colocados em perspectiva para que possam oferecer ao nosso entendimento as dimensões políticas dos fatos revelados.
Os equipamentos educacionais públicos estão instalados em zonas centrais, não centrais e periféricas das cidades. Estão também, em número bastante reduzido, nas zonas rurais.
Predominam entre as escolas instaladas em regiões centrais dados de infraestrutura e manutenção mais adequados e satisfatórios que os encontrados em regiões periféricas.
Há, portanto, reiteração daquilo que o professor Luiz Pereira demonstrava e que pode ser sintetizado com um lamento quase irônico dos movimentos que reivindicavam mais educação na década de 1960, quando se afirma amargamente que onde se tem menos, cada vez mais se tem menos ainda.
Ou seja, os dados de evasão, diferentemente da conclusão que os empresários da educação fazem apressadamente, não derivam apenas dos inegáveis déficits de infraestrutura. Em outras palavras, o que ocorre não pode ser comparado com a situação de um hipotético consumidor que, constatando a pouca qualidade de um produto, o abandona.
A evasão coincide com o declínio na qualidade de vida de famílias inteiras e, nesse sentido, conseguir permanecer na escola é mais difícil e improvável para muitos jovens. E essa menor probabilidade se dá nos espaços mais severamente tocados pelo empobrecimento que tem crescido.
E essa dificuldade se magnifica e se agiganta se as condições materiais e pedagógicas não têm muitos recursos para ensaiar uma “contraproposta” de permanência.
Reincidimos permanentemente insistindo em distanciar acessibilidade de inclusão.
Em outras palavras, já temos sérias estatísticas de grande e complexa relevância que demonstram que as lutas por ampliação de vagas surtiram efeitos positivos no transcorrer do século 20, com alguns momentos de intensificação dos processos expansivos.
Mas ampliação do acesso ainda não é inclusão plena, porque inclusão diz respeito justamente ao engendramento de mudanças de toda ordem, para garantir àqueles que chegam que possam permanecer.
O censo, com números que abrangem desde a educação infantil ao ensino médio, com dados graves e preocupantes em todos os níveis, mas especialmente gravíssimos no que toca o ensino médio, revelou o paradoxo de se conquistar o acesso, mas sem garantias de inclusão.
Os sucateamentos que se tornaram ainda mais visíveis com o censo são diretamente proporcionais às assimetrias sociais. E o ensino médio, dentro de um quadro tão preocupante como esse, não pode continuar sendo pensado como “produto” que precisa ser repaginado para “fidelizar clientes”.
*Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.