A recente divulgação de dados econômicos relacionados ao tema “padrão remuneratório” deu maior visibilidade às condições de trabalho de professores do ensino fundamental e do ensino médio do sistema público de ensino no Brasil.

Esses dados, em certo sentido, refletem também aspectos do sistema privado de ensino fundamental e médio, mas fundamentalmente se referem à escola pública.

Mesmo nas cidades em que foi possível pactuar pisos salariais mais consistentes, a remuneração de professores do ensino fundamental é 48% menor do que a de profissionais das chamadas ciências exatas.

Os pisos salariais do ensino médio dizem respeito aos Estados e, comparativamente, considerando as desigualdades regionais do Brasil, o professor de ensino médio recebe aproximadamente 42% a menos que profissionais em outras atividades baseadas na formação provenientes das chamadas ciências biológicas e exatas.

O Plano Nacional de Educação (PNE), cuja concretização cada vez mais deixa dúvidas sobre a plausibilidade de o país realizar o que nós mesmos aprovamos, menciona a remuneração dos professores e o adensamento das políticas definidoras de pisos salariais e estruturas de carreira no magistério como substância da pedra fundamental para a estabilização de um novo patamar de educação escolar no Brasil.

A realidade não somente contradiz as pretensões do PNE como também reforça o acerto estratégico em considerar a remuneração docente um dos pilares de um plano que se projeta para todo o país.

A discrepância facilmente observável em relação ao perfil de remuneração presente em outras atividades não diz respeito apenas à comparação entre carreiras com evidente desnível em termos de prestígio.

Darcy Ribeiro sempre respondeu que a questão da remuneração docente deveria ser compreendida à luz da história do sucateamento da educação pública, intensificado a partir da década de 1960.

Esse sucateamento, na profunda, mas triste análise do grande antropólogo, não pode ser visto como acidental tampouco como obra do descuido.

Trata-se, no entender do mentor da Universidade de Brasília, de um bem sucedido projeto de montagem de um país voltado para 30% da população.

Patamares mais consistentes de remuneração para a docência com crianças e adolescentes estiveram presentes exatamente quando o acesso às parcelas mais vulneráveis da população era uma dificuldade de grandes proporções.

Na década de 1960, Florestan Fernandes, liderando a campanha em defesa da escola pública, se opunha com veemência aos editoriais que profetizavam o declínio da escola pública se a abertura “ao povo” se concretizasse.

Editorais que insistiam no caráter “insustentável” da manutenção de remunerações dignas, na realidade se alinhavam com setores que davam vida àquilo que Darcy Ribeiro chamou de “pelourinho profundo”, ou seja, um processo de permanente desvalorização das mobilidades sociais escorado nas racionalidades econômicas que sempre projetam a “irresponsabilidade” de certos “gastos”.

No atual momento, as dificuldades de ordem remuneratório no âmbito da docência estão relacionadas a um processo ainda mais complexo e, em certo sentido, ainda mais perverso, e de abrangência internacional.

Vivemos um processo de impressionante “desprofissionalização” do magistério, com exemplos em manifestações empresariais que alardeiam que as políticas de Estado devem controlar o ensino com critérios gerenciais.

Esses critérios dizem respeito a produzir e disseminar materiais com indicadores de competências pré-estabelecidos de modo a projetar um modelo de docência voltado à execução de conteúdos.

Essa “vacina” contra a autonomia docente tornou-se mote de projetos que absorveram retóricas ultramoralistas, que lutam por escolas sem espaço para a pluralidade ideológica e, acima de tudo, escolas dispostas a vigiar o professor para que “não atrapalhe” o direito de aprender do aluno.

É perfeitamente compatível com essa imagem deletéria o padrão de remuneração que temos.

Assim como é perfeitamente compatível com esse cenário que os defensores da educação pública e da qualidade do trabalho docente sejam considerados irresponsáveis populistas.

 

* Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber