Dois assassinatos. Ambas, mulheres. Uma era médica. Outra era vereadora. Ambas prestavam serviços à comunidade. Uma branca, outra preta. Ambas levaram tiros na cabeça.

Uma teve seus bens roubados. A outra, sua voz, também. Ambas foram privadas de suas vidas. Uma foi assassinada por bandidos. A outra também. Ambas, vítimas.

Uma foi notícia privada. A outra ficou estampada nos jornais do mundo. Ambas, estão sob a terra, sós. Existem inúmeras diferenças entre os dois crimes.

Nenhuma que justifique pesar maior por uma que por outra.

Ambas são faces de uma mesma moeda perversa: o que nos tornamos no processo civilizatório para que ousemos fazer distinção entre dores lícitas, causas justas, injustiças justificáveis, defesa de direitos?

Ambas deixam claro que o processo falhou. Ambas atestam as diferenças inconciliáveis a que nos conduzimos. Ambas são vítimas de nossa cegueira escolhida.

As redes sociais destilam dores e ódios propalados a sete ventos e… colocamos uma contra a outra.

Aqui as semelhanças acabam e, o que seria o chão comum, torna-se movediço lodo de discriminação de todo tipo. O olhar para o futuro além da esquina está turvado pela dor, pela miséria humana, pela

pobreza de caráter. Insuflamos o peito e os discursos para defender uma OU outra. Estamos longe de qualquer saída solidária e generosa, muito além de qualquer ética ou justiça. Nos tornamos nós, os bandidos, os mesmos que puxaram os gatilhos.

Estraçalhamos seus corpos entre a esquerda e a direita com um nó de afetos grotescos ao centro. Matamos mais um pouco e outra vez, covardemente, e continuamos nos afastando certos de nossas posições, bradando por justiça enquanto assumimos posições injustas.  Esquartejamos o tecido social do qual todos fazemos parte, buscando as posições mais certas, o olhar mais acurado, a análise mais intelectual ou política que dê conta da barbárie que produzimos. E, tanto faz se nos damos conta ou não da boçalidade de nossas reivindicações. A dor move o ódio e a busca de culpados, sempre do outro lado, sempre bem longe de nós, sempre no lugar onde não fazemos parte ou sequer nos aproximamos.

Gisele e Marielle, profissionais, jovens e promissoras. Tinham família e sonhos. Escolheram profissões que cuidam da Vida, da sociedade, de nossa continuidade digna.  Entender que uma era do cotidiano e outra do palanque. Que uma era da Vida agora e outra da Vida amanhã. Nenhuma mais importante, se não vivemos hoje, não há amanhã para ser construído. Entender que os usos políticos e as causas obscuras das mortes não validam uma ou outra, e não invalidam também. Estamos sempre advogando em causa própria, seja para já ou amanhã, este o fardo mais tramado e inconfessável de nossas intenções. Ganhar as manchetes do mundo ou notas de rodapé, não revelam o valor das Vidas. Não há mérito na morte de quem morre. Não há ética em assassinato. ‘Os bandidos passam bem’…

Maioria ou minoria, classe, partidos, políticas injustas ou direitos garantidos. Linha Vermelha ou Estácio. Condomínio ou favela. O que as vozes clamam é o direito à Vida. Sim, com letra maiúscula e dignidade e alegria e luta e…

“Todo mundo tem direito à Vida e todo mundo tem direito igual”

 

*Professora Assistente Doutora do Departamento de Psicologia Clínica da Unesp de Assis.