Está longe de acabar a crise no Facebook diante da revelação de vazamento dos dados de 50 milhões de usuários para a empresa britânica Cambridge Analytica (CA), ativa nas campanhas do Brexit no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos. Até ontem, a empresa perdera quase 10% de seu valor de mercado e era questionada no Parlamento britânico.
O executivo-chefe da CA, Alexander Nix, foi suspenso do cargo depois de flagrado em declarações comprometedoras pelo britânico Channel Four– ele sugeriu táticas de campanha que envolviam a sedução por “garotas ucranianas” e fraudar vídeos de corrupção.
No Brasil, as implicações vão além da parceria incipiente que a CA mantinha com uma empresa local ou da conhecida insegurança de dados privados no Facebook. A questão mais relevante, neste ano eleitoral, diz respeito à propaganda na internet.
Pela legislação eleitoral em vigor, candidatos estão autorizados a remunerar as redes sociais pelo “impulsionamento” de conteúdos. Tem sido essa, basicamente, a técnica adotada por campanhas vitoriosas mundo afora – e não apenas a de Trump.
O marketing político sofreu uma revolução nas últimas décadas nos Estados Unidos. Mensagens antes distribuídas por rádio e TV se tornaram no meio digital mais dirigidas, de modo a identificar candidatos com os interesses específicos de cada eleitor.
O primeiro a adotar essa estratégia foi o republicano Karl Rove, na primeira campanha de George W. Bush. Rove montou uma extensa base geográfica, com bairros, quadras ou ruas em que os eleitores tinham interesses específicos. A mensagem que apresentava Bush como um “conservador com sentimentos” era adaptada a cada código postal.
Diante das derrotas sucessivas, os democratas tiveram de correr atrás da tecnologia empregada pelos republicanos. A eleição de Barack Obama representou a vitória da nova estratégia digital democrata. Em vez da segmentação apenas geográfica, a campanha de Obama usou pela primeira vez uma base de dados em que os eleitores eram identificados individualmente, conhecida como VoteBuilder.
O quadro mudou completamente na campanha de Trump. Os republicanos recorreram à CA e a informações próprias para montar uma base de dados única, conhecida como Voter Vault. Ela era capaz de identificar não apenas cada eleitor individualmente, mas de associar todas as suas preferências e inclinações, obtidas por meio dos dados recolhidos do Facebook.
O poder das “curtidas” do Facebook para prever preferências políticas era demonstrado em círculos acadêmicos desde pelo menos 2013. Era possível deduzir a partir de relações inesperadas – como o gosto pela personagem Hello Kitty ou cosméticos da Sephora – as posições ideológicas ou a orientação sexual com grau razoável de confiança, mesmo que o usuário tomasse cuidado para escondê-las.
Foi com base num desses trabalhos, de pequisadores de Cambridge e Stanford, que o especialista em tendências de moda Christopher Wyllie criou o sistema da CA. Para ele, a política não era tão diferente assim da moda. Preferências antes vistas como anátemas, como pochetes ou sandálias Crocs, poderiam ser transformadas em tendências aceitas pelo público. Levaria vantagem quem soubesse fazer isso com políticos.
Wyllie contou ao jornal The Observer que procurou os autores do estudo, mas eles não aceitaram trabalhar com ele. Recorreu então a outro pesquisador de Cambridge, Aleksandar Kogan. Ele topou criar o site que serviu de isca para capturar, sem autorização dos usuários, os 50 milhões de perfis do Facebook, a partir de um questionário respondido por apenas 160 mil.
A base de dados fornecida pela CA não foi o único ponto de partida da estratégia de marketing da campanha de Trump. Ela foi reunida à Voter Vault para dar origem a um repositório ainda maior e mais detalhado, em que os 220 milhões de americanos eram classificados de acordo com 5 mil tipos de características diferentes.
Mais que ter uma base de dados detalhada, o essencial foi usar os perfis do Facebook para dirigir mensagens específicas aos eleitores, técnica conhecida como “microtargeting”. Seu artífice foi o líder da campanha digital de Trump, Brad Parscale. Ele obteve resultados inimagináveis nos tempos de Bush ou Obama.
Parscale começou com um orçamento de US$ 2 milhões e, até o final da campanha, gastou não mais de US$ 70 milhões por mês, sobretudo em anúncios no Facebook. Havia diariamente algo como 50 mil variantes de anúncios, em geral pequenos vídeos produzidos e dirigidos de acordo com o perfil – no dia do terceiro debate, em outubro, foram 175 mil.
O objetivo de Parscale não era apenas conquistar os eleitores que sabia ter potencial para votar em Trump nos estados-pêndulos que definiriam a eleição. Ele também produziu anúncios para afastar das urnas eleitores cujo voto em Hillary Clinton era dado como certo.
Seria possível a algum candidato reproduzir tal estratégia no Brasil? Parcialmente. Há vários obstáculos. Primeiro, não há por aqui bases de dados tão detalhadas como as dos americanos – por lá, elas foram construídas ao longo de anos. Segundo, o brasileiro cujo voto ainda está indefinido (algo como 50% do eleitorado) tem expectativa de conhecer os candidatos no horário eleitoral (inexistente por lá) – o papel da TV ainda é crucial na nossa campanha.
Mesmo assim, o caso CA demonstra que mensagens dirigidas a perfis específicos no Facebook podem ter um impacto decisivo. A conclusão vale tanto para os candidatos, que podem se aproveitar dessas ideias para investir melhor sua verba de campanha, quanto para as autoridades do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em vez de se preocupar com a disseminação de notícias falsas – o fantasma das “fake news” ganhou vulto em Brasília sem muita razão concreta –, elas deveriam é ter estudado uma regulação mais inteligente para o “impulsionamento” de conteúdos digitais. Não que deva ser proibido, mas o eleitor precisaria saber muito bem como usam seu perfil.