Responsáveis por promover o debate e propor soluções administrativas para disputas decorrentes do uso das águas, os comitês de bacia hidrográfica estão longe de atrair a participação da sociedade em geral. A constatação é do professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Cláudio Di Mauro.
Por seis anos ele presidiu o Comitê de Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí e, hoje, é membro efetivo do comitê do Rio Paranaíba. Experiências que, somadas aos oito anos como prefeito de Rio Claro (SP) e ao tempo que passou como assessor da Agência Nacional de Águas (ANA), levam-no a afirmar que uma maior participação cidadã nesses grupos, compostos por representantes do Poder Público, dos grandes usuários e de entidades civis, ajudaria a tornar mais democrática e eficaz a gestão das águas.
Professor da UFU, Cláudio Di Mauro, defende participação popular nos comitês que gerem as bacias hidrográficas do país
“É preciso uma participação continuada de todos os setores sociais envolvidos com o tema. A gestão da água não pode estar nas mãos apenas de governos ou de empresas privadas”, afirma em entrevista à Agência Brasil o doutor em Geografia Física e ambientalista convidado a participar, nos próximos dias, do 8º Fórum Mundial da Água e do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), que ocorrem em Brasília.
Agência Brasil: A concorrência entre usuários de diferentes setores, com necessidades diversas, tem provocado conflitos em torno da disponibilização das águas. Quais são, hoje, as principais disputas em torno da gestão dos recursos hídricos e quais os impactos para a sociedade brasileira?
Cláudio Di Mauro: Este é – ou deveria ser – o ponto mais importante dos planos de bacias hidrográficas, que são os dois instrumentos mais importantes no gerenciamento das bacias: a identificação dos conflitos já estabelecidos e das áreas com potencial de produzir discórdias. Há regiões em que o setor agrícola disputa com o setor energético. Há áreas em que a mineração impacta locais onde são captadas águas para o abastecimento público – algo que, inclusive, tem aumentado significativamente. Cabe lembrar que isto não acontece apenas no Brasil. Basta lembrar da disputa pelo controle das nascentes de água existentes nas Colinas de Golan [território disputado por Síria e Israel]. Ou do episódio conhecido como Guerra da Água, ocorrido em 2010, em Cochabamba, na Bolívia, que resultou em mortes. Hoje, enquanto alguns países discutem a concessão privada dos serviços de saneamento, outros estão revertendo o processo, municipalizando as empresas privatizadas. Há, em todo o mundo, muitos conflitos provocados pelo uso da água.
Agência Brasil: A maior participação popular junto aos comitês de bacias hidrográficas ajudaria a minimizar o potencial de conflitos no país?
Cláudio Di Mauro: A presença efetiva da sociedade civil nos comitês ajudaria demais. Infelizmente, não é isso o que acontece hoje. Até porque, a participação da sociedade civil envolve custos que precisariam ser financiados de alguma forma. Os representantes do Estado recebem diárias para participar das reuniões dos comitês. Os das empresas privadas são pagos para defender os interesses do setor privado. Diante disso, precisaríamos não só motivar e capacitar os representantes da sociedade civil, mas financiar de alguma forma sua participação [mesmo eles estando vinculados a organismos que atuam com temas ligados a recursos hídricos e meio ambiente na região compreendida por determinada bacia]. Sem isso, as decisões dos comitês estarão a serviço unicamente dos interesses estabelecidos entre setores empresariais e governos. É preciso criar condições para ampliar a participação da sociedade civil.
Agência Brasil: Mas a sociedade está ciente do papel dos comitês e sobre como ela pode participar das discussões sobre o uso das águas?
Cláudio Di Mauro: Não. Não está. Em parte porque o tema águas ainda não se tornou uma agenda efetiva da sociedade e dos governos. Os comitês não são conhecidos nem mesmo nas bacias hidrográficas onde estão implantados. Como ex-presidente de um deles, posso dizer que não conseguimos chegar até a população. É preciso um trabalho de sensibilização [da sociedade] que não pode estar a cargo apenas dos comitês, pois seria muito importante que cada vez mais gente participasse de forma continuada dos grupos técnicos e das reuniões dos comitês, que são públicas. Além disso, de maneira geral, os comitês não estão sendo capazes de ser a primeira instância a administrar as crises e conflitos sobre uso d’água. Eles precisam assumir de fato este papel. Para isso, os órgãos gestores estaduais têm que estimulá-los a agir conforme o que estabelece nossa legislação, que é boa, mas precisa de ajustes. Estamos falando de um outro modelo de participação mais ativa da sociedade civil, com decisões coletivas. A gestão da água não pode estar nas mãos apenas de governos ou de empresas privadas.
Agência Brasil: Em um relatório de 2015, a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] destacou a diversidade de situações existentes no Brasil, apontando que os resultados obtidos pelos estados na gestão da água são muito desiguais. Qual o impacto dessas desigualdades regionais para a gestão de um recurso estratégico e de uso comum?
Cláudio Di Mauro: Seria necessária uma maior uniformidade entre os planos de gestão e a administração dos recursos hídricos pelos estados, mas a realidade é que a maioria dos órgãos estaduais de gestão dos recursos hídricos e ambientais é pífia. No Brasil inteiro, eles não recebem a devida atenção e sofrem pela falta de estrutura. Uma das consequências é que contam com pouca gente para fiscalizar o setor ou para atender aos pedidos, como os de licença para captar água. Há estados que sequer têm legislação adequada.
Agência Brasil: As condições climáticas são suficientes para justificar a escassez ou a falta d’água, mesmo que momentânea, em várias partes do Brasil, país detém 12% da água doce mundial?
Cláudio Di Mauro: Não. Não são. E não só isso. Além de deter uma grande quantidade de água, o país é favorecido por uma enorme quantidade de chuva. Há países que contam com 500 mm [milímetros]; 600 mm de precipitação anual e que conseguem administrar isso. No Brasil, de maneira geral, temos 1.400 ml, 1.500 ml de chuva anual. De qualquer forma, precisamos sim ter políticas públicas para implementarmos práticas de uso mais eficientes. Até para nos precavermos. É importante educarmos a população sobre a importância do uso racional da água. Só não podemos é transferir para os usuários domésticos a responsabilidade pela conservação dos recursos hídricos ou por crises do sistema. Até porque, enquanto o usuário doméstico utiliza, em média, 8% da água captada, o setor rural consome, em média, mais de 70% de toda a água bruta que é captada e a indústria consome outros 22%. Ou seja, se estes dois setores conseguirem economizar 10% do volume destinado à irrigação ou à produção, teremos uma quantidade de água enorme para o conjunto da população. Além disso, em média, cerca de 35% da água tratada destinada ao consumo doméstico se perde na distribuição. Isso para não falarmos de outros problemas, como, por exemplo, a recuperação e preservação das nascentes dos rios e a impermeabilização do solo nas cidades. Estamos impedindo as águas das chuvas de se infiltrarem no solo para alimentar aquíferos livres e os lençóis subterrâneos.
Agência Brasil: Em relação à Lei das Águas, quais os principais avanços desde que a Política Nacional de Recursos Hídricos entrou em vigor, em 1997?
Cláudio Di Mauro: Se, hoje, enxergamos todos esses problemas de que estamos falando é justamente porque houve avanços. Parece contraditório, mas não fosse pelas mudanças positivas decorrentes da Lei das Águas, estaríamos em uma situação muito pior. A partir da vigência da lei, vários estados elaboraram legislações próprias e implementaram um sistema de informações. Hoje, há maior controle sobre determinados instrumentos de gestão, como a cobrança pelo uso das águas de algumas bacias hidrográficas – prática que não pode substituir os recursos que devem ser investidos pelos governos federal, estaduais e municipais. Houve avanços significativos, mas ainda temos muito o que avançar, pois o Brasil continua muito aquém de seu potencial para estabelecer uma gestão compartilhada, participativa e democrática dos recursos hídricos.
Agência Brasil: O senhor mencionou que o tema águas ainda não integra a agenda da sociedade e dos governos. O fato de o Brasil sediar o 8º Fórum Mundial da Água, que pela primeira vez acontece no Hemisfério Sul, pode contribuir para colocar este tema na agenda nacional?
Cláudio Di Mauro: O evento já tem o condão de ter gerado o Fórum Cidadão [instância do evento principal lançada em 2017 para estimular a sociedade a discutir temas relevantes para a gestão de água e compartilhar as propostas dos participantes] e o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), um contraponto ao 8º Fórum, criado para questionar a tentativa de privatização das reservas e fontes naturais de água. Ou seja, a sociedade se mobilizou em função do evento mundial. Aposto que, em virtude disso tudo isso, o debate ainda vai se ampliar significativamente.