Houve uma época épica, onde reinavam os gigantes do velho paranazão. Quantas histórias vividas e ouvidas sobre as batalhas travadas (e a maior parte delas perdidas) contra os grandes peixes de que habitavam as águas deste nobre rio. Era tão vasta a diversidade e a quantidade de peixes que os pescadores armavam-se como quem ia a um campo de guerra porque ali “brigas violentas” se travavam contra enormes pintados, jaús, barbados, pacus, e em destaque, o rei dos rios, o valente dourado.
Gerações foram formadas com o sustento extraído desse nobre rio, incluindo a minha. Lembro-me que os moradores ribeirinhos sempre tinham uma novidade para mostrar aos pescadores visitantes: um grande peixe apanhado na noite anterior num anzol de galho. A adrenalina e a esperança de capturar um exemplar semelhante nos deixava fascinados e inquietos para arremessar logo as iscas na água pois era certo o encontro com um belo peixe.
O tempo passou. A natureza local mudou muito (não porque ela o quisera, mas por efeito da presença humana). O número de pescadores aumentou num nível inimaginável (não porque tenham amor pela pesca, mas pela exploração comercial que gera divisas e que torna essa atividade predatória, ou melhor, parasitária porque o benefício é extrativista e unilateral). A velha piscicultura da famosa Usina de Jupiá morreu a mingua. O rio tem aspecto de morto. A urbanização e a industrialização às suas margens trouxeram poluição, exploração e morte. Digo morte na acepção literal do termo, pois existe nessa região uma área conhecida como Vietnã. Nesse local, pescadores se amotinam contra os agentes fiscalizadores do meio ambiente que sofrem agressões físicas, verbais, apedrejamento, humilhações e até mesmo são alvos de disparos por armas de fogo.
Ao conversar com aqueles que apreciam a pesca ou dela vivem, soa uníssono: esse rio acabou! tá morto!. Mas é preciso lembrar que o rio não morreu de “disfunção fisiológica” ou porque cumpriu sua sina. Os humanos acabaram com ele. Nós o matamos! De fato, sumiram os peixes de couro. O dourado foi praticamente extinto. Nuvens de piquiras dissiparam-se. Jurupoca e jurupecém nem mesmo pra remédio. E o que sobrou das piaparas e piaus são consumidos numa fração de segundos após a liberação da pesca (não que não haja pesca predatória mesmo na época do defeso), bastando verificar aquilo que é comercializado nas peixarias locais.
As áreas de reserva são pilhadas às escondidas. O Rio Aguapeí é assaltado por pescadores que escondidos às matas de suas margens capturam diuturnamente uma quantidade incontável de pacus, curimbas, piaparas, mandis e especialmente o pintado. Em toda sua extensão, desde sua nascente até desaguar no Rio Paraná, no município de Castilho, seu leito é trespassado por assaltantes travestidos de pescadores, especialmente pelos moradores locais que se valem dessa prerrogativa geográfica.
Muitos mergulhadores com cilindros relatam o deserto no fundo do rio. Praticamente sem cor, sem vida. O único movimento que se vê é das incontáveis arraias e abotoados que proliferam livremente e sem concorrência. Até o tucunaré, peixe invasor e que tem sido incriminado por muitos como sendo o vilão responsável pela diminuição dos peixes nativos está desaparecendo.
Por essa escassez, é preciso encontrar um culpado. Coloquemos, pois, a culpa na conta do tucunaré. Afinal, ele não pode se defender ou em épocas de eleição votar. Inocentemos os predadores com CPF e título de eleitor. Estes que estendem milhares de quilômetros de redes chegando a fechar canais e rios inteiros. Os tarrafeiros que atacam a “boca” das barragens saqueando cardumes inteiros especialmente na época do defeso. Os praticantes da pesca sub-aquática que proliferam como um câncer frente a oferta de captura farta, a venda do pescado e seus famosos filés aos restaurantes. Assemelham-se a grupos de ariranhas sondando as margens dos rios e fazendo fieiras com incontáveis peixes de toda sorte e tamanho.
Isso sem falar dos incontáveis pescadores de vara ou caniço. É possível fazer a travessia entre o estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul andando sobre as águas tamanha quantidade de barcos enfileirados lado a lado. Haja peixe pra tanto pescador. Mas a culpa continua sendo do tucunaré. Perdoe-me o sarcasmo, mas, afinal de contas, é inofensiva a ação do ser humano que preda a natureza acima e abaixo da água, desrespeitando inclusive a época da piracema alegando subsistência. Aliás, a culpa também não é da indústria e do esgoto urbano que polui os rios. Imaculadas são as empresas gestoras das usinas hidrelétricas. Culpados mesmo são os bons policiais que arriscam suas vidas na defesa e na fiscalização da natureza. Criminosos são os que praticam o pesque e solte. E não nos esqueçamos do vilão de tudo isso, porque a culpa ainda é do tucunaré.
*Ex-policial militar rodoviário do Estado de São Paulo, médico veterinário, professor, pós-doutor pelo Departamento de Apoio, Produção e Saúde Animal. UNESP Faculdade de Medicina Veterinária de Araçatuba. Laboratório de Informações Visuais. UNICAMP. Campinas