Na esperança de ajudar a mãe com uma doença degenerativa, uma mulher de 46 anos, que prefere não ser identificada, reuniu um grupo de amigos para ir a Abadiânia (GO), em busca dos tratamentos oferecidos pelo médium João de Deus. Era a primeira semana de dezembro de 2014. Ao chegar na “triagem” da Casa Dom Inácio de Loyola, ela recebeu um bilhete, que a convidava para uma sessão pessoal. O que não esperava é que, neste encontro, ela sofreria abuso sexual.
“Ele não chama uma pessoa em fase terminal, ele não chama um homem. As vítimas são escolhidas a dedo, são selecionadas. E você se sente coagida.”
Após os relatos exibidos pelo programa “Conversa com Bial” e pelo jornal “O Globo”, em que 13 pessoas contaram terem sofrido abuso de médium, dezenas de outras mulheres relataram o mesmo tipo de crime. O Fantástico revelou a história de mais 25 delas. Os relatos se referem apenas a denúncias de crimes sexuais. Não se trata de questionar os métodos de cura de João de Deus ou a fé de milhares de pessoas que o procuram.
O Ministério Público planeja uma força-tarefa para investigar o médium, já que mais de 200 casos chegaram ao conhecimento do órgão, segundo a promotora Gabriela Manssur, de São Paulo.
A defesa dele nega as acusações. Advogado do médium afirma que ele irá colaborar com as investigações e está à disposição da Justiça.
Relato
A mulher conta que chegou à cidade do interior de Goiás com os amigos na noite anterior ao atendimento. Ela chegou às 7h na Casa onde o médium atende.
“Quando nós chegamos, ela tava lotada. E toda aquela magia, aquela coisa, o mesmo propósito da fé. A gente começou a escutar os relatos: meu filho foi curado pelo João, minha mãe tava quase morrendo e o João salvou, meu irmão estava acamado e ficou bom. Então, aquilo dava aquela esperança para nós”.
Após passar por uma espécie de triagem com João incorporando o espírito de Dom Inácio de Loyola, ela contou seu problema e recebeu um bilhete do médium.
“Quando chegou a minha vez de passar por ele, ele rabiscou um papel e falou assim: ‘Vai falar com o João’. Não entendi nada. Ele passou para uma moça, uma assistente dele e falou assim: ‘você vai para a energização, um lugar que você passa energia para as pessoas que você tá precisando e, depois dessa energização, vai falar com João.”
Depois da sessão, ela diz que seguiu para a fila na porta da sala de João de Deus.
“Chegando lá, tinham umas pessoas na frente para falar com ele. Quando ele abriu a porta, ele olhou pra mim e mandou entrar. Era uma sala relativamente grande, tinha um sofá, uma cristaleira com alguns cristais. Ele me perguntou o que me trazia à Casa. Eu falei pra ele que vim aqui por conta da minha mãe, que tem uma doença degenerativa nas pernas, e pro senhor me ajudar com a cura dela”.
Foi aí que o abuso aconteceu.
“Aí ele olhou bem pra mim e me levou para o banheiro. Me mandou fechar os olhos. Perguntou se eu tinha fé. Eu falei assim: ‘Fé é o que eu mais tenho’. Eu estava com os olhos fechados e ele colocou a minha mão na barriga dele, já perto do órgão dele. Ele respirava muito ofegante. Até que eu senti que ele havia colocado o pênis dele para fora e ele colocou a minha mão no pênis dele e ficou manipulando”.
Neste momento, ela afirma que o médium ofereceu um cristal de um armário, com a justificativa de que seria a forma dela de se conectar com ele, enquanto estivesse longe.
“Ele falou: ‘A partir de agora você é filha da casa’. Ele me falou para escolher um dos cristais que tinha na prateleira e que aquele cristal seria a conexão dele comigo. A única forma de se provar que eu estive lá é o cristal.”
Ela guarda a pedra em casa até hoje, como prova do abuso que sofreu.
Cristal entregue a uma mulher que diz ter sido vítima de abuso sexual cometido por João de Deus — Foto: Sérgio Fernandes/G1
A suposta vítima relata que foi convidada por João a se encontrar novamente com ele no dia seguinte. Ela foi até a Casa com o grupo de amigos. Mas ela fugiu para evitar um novo contato.
“Eu não voltei, fiquei com medo. Eu fiquei pensando o que poderia acontecer. Eu já não tinha mais aquela coisa de ir ao encontro de João de Deus. Eu não vi mais aquele homem incorporando ninguém, eu não vi naquele homem um espírita sério, sabe? Eu via um homem comum se aproveitando do fato, de algum dia ele ter sido um espírita, se aproveitando das pessoas”.
Dias depois, a mulher resolveu se abrir com um dos integrantes que viajou com ela até Goiás. Ao saber do episódio, o homem se recusou a acreditar.
“Depois de tudo que eu falei para ele, ele se virou e falou assim: ‘Tem certeza que você não tá confundindo as coisas?”.
Assim, ela decidiu não falar mais para ninguém sobre o que tinha acontecido. A mulher acredita que o seu casamento acabou por conta do episódio. “Não consigo mais confiar nas pessoas”, afirma.
Ao ouvir os relatos revelados pelas reportagens, ela sentiu novamente uma ponta de esperança. Agora pretende denunciar o abuso sofrido para autoridades, se isso ajudar mais pessoas também falarem de seus traumas.
“Quem é que acreditaria em uma pessoa simples como eu, quem é que iria acreditar na minha história? Agora nós temos força. Agora nós não somos só uma. Nós somos várias”.