Tem tudo a ver com aquele sítio no interior de São Paulo. Ela lembra que ficava sozinha com a mãe e os irmãos. O pai trabalhava em outra área rural, distante. Nessa época, era raro ter energia elétrica. Isso só acontecia em poucos dias – e, às vezes, por pouco tempo. O comum mesmo era conviver com as velas, a escuridão e dormir bem cedo. Daniela Ushizima, 42 anos, passou a infância assim. Divertia-se com a vida na roça, contato com os bichos, é verdade. Mas nutriu um medo que direcionou sua vida profissional.
Hoje cientista-pesquisadora no Laboratório Nacional Lawrence Berkeley (LBNL), nos EUA, cresceu com medo de escuro. “Tenho medo até hoje! Acho que foi algo que me levou a pesquisar energia [risos]. Minha mãe ficava sozinha com a gente em um sítio e não tinha luz, eu não conseguia ver e isso dominou o que eu faço porque trabalho com visão computacional, como conseguimos enxergar, não importa se é uma célula, a face das pessoas, reconhecimento de digital… Acredito que tenha influenciado bastante, essa coisa de precisar enxergar”.
Fora isso, a vida no sítio também trouxe outras experiências que ajudariam a nortear a trajetória e o trabalho de Daniela. “Para criança, era uma vida de alegria, mas tinha carência de tudo, só tínhamos roupa de doação, não tinha dinheiro para nada. Eu pedia para minha mãe para ir para a escola e aí mudamos para uma cidade do interior. Meu pai continuou trabalhando em fazenda, ausente de casa e minha mãe foi uma grande inspiração. Talvez mais um motivo para brigar pela valorização da mulher, da saúde da mulher”. Hoje, parte do trabalho de Daniela é esse. Junto com outras três pesquisadoras ela lidera o projeto CRIC (da sigla em inglês Cell Recognition for Inspection of Cervix – Reconhecimento Celular para Inspeção do Cervix). O objetivo acelerar o diagnóstico de câncer de colo do útero.
O projeto ocorre em colaboração com professores e profissionais de universidades federais do Brasil e por meio de intercâmbio entre os dois países. “Começamos em 2013 e hoje trabalhamos com imagens do SUS que começamos a processar em 2014. Conseguimos ter o projeto contemplado pelo Ciência sem Fronteiras e, com fomento brasileiro, mandamos profissionais para os EUA. Já foram dois piauienses, um aluno do Ceará e a professora desses alunos também foi para lá e eu vindo para cá para dar cursos, tutoriais”. O objetivo do trabalho sempre foi bem claro. “Queremos que os programas venham para o Brasil, estamos criando os softwares e a ideia é automatizar o exame de colo do útero, pelo menos em algumas etapa dentro do SUS, e não acho que é um sonho impossível, temos tecnologia para isso”.
Já conseguimos fazer contagem automática e processo de classificação das células. Isso é feito por imagem.
Daniela defende a importância desse tipo de trabalho já que o câncer de colo do útero está entre os que mais matam mulheres no Brasil e o diagnóstico precoce é importante para o tratamento e a saúde dessas mulheres. “Tem muita gente morrendo e atinge a mulher em sua idade mais produtiva. Vamos perder essas mulheres? É um problema de saúde pública, somos quatro mulheres nesse projeto e se não for a gente quem vai atrás?” Com o trabalho, o grupo conseguiu fazer contagem automática e processo de classificação das células. “Isso é feito por imagem. A gente conversa com patologistas e entende o que ele está olhando naquela imagem, então toda essa caracterização da célula a gente transforma em número, classificação, e usa técnica de inteligência artificial. Um dos softwares faz análise e classificação em segundos de centenas de células”.
E essa não é a primeira vez que Daniela usa seus conhecimentos de cientista para aplicar na saúde. Seu mestrado foi com análise de batimentos cardíacos e o doutorado focava em análise de células para diagnóstico de leucemia. “Sempre fiquei dividida [entre saúde e tecnologia] e a computação me permitiu unir as duas”. E espera seguir assim. O fomento ao projeto ocorreu até o fim do ano passado, mas Daniela tem esperança de poder continuar o trabalho de alguma forma. Ela sabe das dificuldades que a área de pesquisa enfrenta, mas ao mesmo tempo acredita no poder de mudança e descobertas que ela pode ter. “Algumas pesquisas demoram. Algumas mais do que outras. Tem que entender que demora e que tem gente séria trabalhando. Tem muita gente que faz coisa errada e tem muita gente que fez coisa certa. Eu comprei até material para os alunos com a bolsa que eu ganhei. Mas às vezes é difícil entender o impacto da pesquisa e porque não chega logo, mas é extremamente necessário”.
Algumas pesquisas demoram. Algumas mais que outra. Tem que entender que demora e que tem gente séria trabalhando.
Para ela, foi o trabalho como pesquisadora que a levou tão longe e faz questão de lembrar sempre de onde veio, lá daquele sítio. “Acho que eu nunca saí daqui de verdade. Meu coração está aqui e essa necessidade de tentar impactar a saúde e a educação, isso não vai embora. Estou fora há 11 anos, mas não esqueço que sou brasileira e sempre mantenho esse contato, levo gente para lá, treino gente aqui, quero fazer essa transferência do conhecimento, avançar o que eu posso. Estou devolvendo [para o Brasil] de um jeito que ninguém vai tirar de você, como meus pais me ensinaram, com educação. É com educação que a gente constrói”.
Atualmente ela não sabe bem o rumo que o projeto terá por causa do fim do incentivo, mas está confiante. “Agora vamos arranjar outro projeto, vamos dar um jeito. Se não tiver vou fazer no fim de semana, tirando do bolso, do jeito que eu consigo”. E acredita que o projeto pode se tornar uma realidade no sistema de saúde. “Ainda que eu não consiga, treino pessoal aqui que espero que toquem essa parte de automatização do SUS, do diagnóstico de câncer de colo do útero, que se for diagnosticado em estágio inicial vai fazer toda a diferença. Eu acho que dá”. (Fonte: texto Ana Ignacio/Edição: Andréa Martinelli – HUFFPOST Brasil)