O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta quinta-feira (21) que a medida provisória do presidente Jair Bolsonaro para proteger agentes públicos de responsabilização durante a pandemia do coronavírus não pode servir para blindar atos administrativos contrários a recomendações médicas e científicas.
Os ministros mantiveram a previsão de que gestores públicos só devem responder nas esferas civil e administrativa da Justiça quando “agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro”, como prevê a MP editada pelo presidente.
No entanto, os ministros definiram que, na aplicação dessa norma, devem ser incluídos no conceito de erro grosseiro medidas que não observem normas e critérios técnicos estabelecidos por autoridades sanitárias e organização de saúde do Brasil e do mundo.Além disso, os ministros afirmaram que equívocos que violem os princípios constitucionais da precaução e da prevenção também devem ser considerados erros grosseiros aptos de responsabilização.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro tem minimizado o impacto do coronavírus e se colocado contra medidas de distanciamento social, atitude que culminou na demissão de dois ministros da Saúde no intervalo de um mês, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.Apesar de dizer lamentar as mortes, o presidente tem dado declarações às vezes em caráter irônico quando questionado sobre as perdas humanas com a Covid-19. Como na ocasião em que afirmou não ser coveiro ou quando disse: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.”
Os ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Luiz Fux se posicionaram para dar interpretação conforme à Constituição à MP e impor essas balizas à aplicação da medida.
Apenas o ministro Marco Aurélio votou para declarar a “inadequação da ação” por entender que o STF deveria aguardar a análise da matéria pelo Congresso antes de julgar sua constitucionalidade.O texto entrou em vigor na última quinta-feira (14) e, para não perder a validade, precisaria ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias.
No julgamento, Barroso citou especificamente a cloroquina, liberada pelo Ministério da Saúde após pressão do presidente Bolsonaro.
A maioria dos ministros, porém, fez questão de ressaltar a necessidade de as autoridades públicas observarem a opinião técnica e científica antes de adotarem medidas administrativas.
“O erro grosseiro é o negacionismo científico voluntarista. Temos diversos órgãos que afirmam o que é eficiente e aquilo que não é eficiente”, assinalou Fux.Em outro momento, o ministro disse que o novo coronavírus é desafio para a medicina e alertou que “se pretende utilizar fármacos que ao invés de curar doentes venham a matar”.Gilmar Mendes fez alusão à mais recente frase de Bolsonaro sobre o medicamento que ainda não tem eficácia comprovada.
“Não podemos é sair aí a receitar cloroquina e tubaína, não é disso que se cuida. O relator deixou isso de maneira evidente, é preciso que haja responsabilidade técnica”, disse.O ministro ressaltou que as decisões do governo devem ser guiadas por parâmetros técnicos e científicos, incluindo as orientações da Organização Mundial da Saúde.
Gilmar voltou a dizer, também, que nenhum agente pública, “nem o presidente da República”, está autorizado a implementar “políticas de saúde genocidas”.
Moraes seguiu a mesma linha: “Há ciência e pesquisa para balizar exatamente os gestores públicos”.
Em relação à solução para a MP, porém, ele divergiu. Assim como Cármen Lúcia, Moraes acompanhou a maioria para dar interpretação restritiva à MP. Ambos, porém, foram além e também votaram para que dois trechos da norma fossem modificados.
O ministro defendeu que deveria ser invalidado o artigo da medida que prevê blindagem a erros grosseiros cometidos no “combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia”.
O magistrado sustentou que as consequências da doença podem levar até dez anos e que a redação da norma ficou muito abrangente
“Isso pode justificar medidas relacionadas a planos econômicos, segurança pública, estaríamos aqui a permitir uma cláusula tão aberta, que se perpetuaria ao longo dos anos e que, a meu ver, inverteria a ordem, a lógica. A regra é a responsabilização, que nós transformaríamos em exceção”, disse.E completou: “A partir dos próximos anos, todas as medidas terão alguma ligação, algum nexo com os efeitos gerados pela pandemia. O mundo hoje só toma medidas relacionadas à pandemia. Não há aqui aquela excepcionalidade que permite um novo tratamento de responsabilização”.
Os ministros analisaram seis ações apresentadas contra a MP. A inclusão na pauta do STF ocorreu apenas um dia antes do julgamento, o que não é comum. A iniciativa fez parte de uma mudança de estratégia da corte na análise de matérias de autoria do Executivo.
Após críticas pelas recorrentes decisões monocráticas de membros da corte, Barroso e o presidente do STF, Dias Toffoli, preferiram levar a discussão ao plenário, a fim de dar mais peso ao entendimento firmado sobre o tema.Assim, em vez de apreciar sozinho as impugnações à MP, Barroso se articulou com Toffoli para levar o caso ao plenário. O presidente do STF então mudou a previsão de julgamentos para atender ao pedido do colega.
A decisão do Supremo vai ao encontro da avaliação feita pelo presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), José Mucio Monteiro, que, em entrevista à Folha de S.Paulo, disse que o texto estimula gestores mal-intencionados e que não pode haver salvo-conduto quando os gastos com a pandemia já consumiram mais de R$ 600 bilhões.
Gilmar Mendes não limitou seu discurso à MP. Como a ministra Rosa Weber deixará a a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na próxima semana, os colegas de STF exaltaram sua gestão na corte eleitoral.
E Gilmar aproveitou para criticar “os terraplanistas” que acreditam em fraude na urna eletrônica.
O QUE DIZ A MP
Texto estabelece que só poderão ser responsabilizados, nas esferas civil e administrativa, os agentes públicos que “agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro”.Medida considera ações adotadas, direta ou indiretamente, no contexto do enfrentamento da emergência sanitária da Covid-19 e no combate de seus efeito econômicos.
Erro grosseiro é definido como “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.A medida é assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União).