“Eu tinha medo de falar. Eu não me enxergava”. Não saber ler ou escrever fez com que Eudenice Moura Augusto buscasse o silêncio. Tinha vergonha de não conhecer as palavras, de pedir ajuda, de “ser livre”. Tudo aconteceu muito rápido. Quando criança, trabalhava na roça com os pais. Aos 12, ajudava a família a plantar e a colher arroz, feijão e milho. Eudenice nasceu em Corrente, cidade sertaneja do sul do Piauí. Mudou com a família para Tocantins e depois para o Distrito Federal. Aos 18, foi trabalhar como doméstica. Hoje, mesmo aposentada, sustenta a casa com diárias para lavar, passar e cozinhar. Ela lembra que, aos 20, estava casada. Depois, vieram os três filhos. E estudar não era prioridade.
“Queria conversar com as pessoas, mas não sabia. Nem decifrar o letreiro do ônibus, entender os avisos no mercado ou ler um livro”. Eudenice é de verdade, de nosso tempo, mas poderia ser história de Clarice Lispector, uma das principais escritoras do século 20, nascida há exatos 100 anos. Tal qual Macabéa, personagem imortal de A hora da estrela (1977), obra consagrada da autora, ela se sentia presa e abandonada. “A história de Macabéa se resume à sobrevivência quase inumana, pois, para tudo o que se sente e deseja, não dispõe de palavras para expressar”, descreveu a professora Clarisse Fukelman, na apresentação da 23ª edição do livro.
Mas na história de Eudenice, o destino é diferente da ficção de Macabéa. A liberdade da empregada doméstica surgiu ao conhecer, em São Sebastião (DF) um projeto social de alfabetização. Os cadernos passaram a ser grandes amigos. Mora no que chama de um “barraco” na periferia e trabalha em uma “casa grande” no Lago Sul (zona nobre de Brasília). Mesmo assim, o mundo mudou para ela. “Gostei muito de aprender as palavras. Consigo agora falar com os meus patrões. Nunca achei que saberia falar ou escrever sambódromo ou tamarindo ou vassoura”. Ela terminou o ensino médio e agora sonha fazer faculdade.
A simetria das emoções que permeiam a história real de Eudenice com a história inventada de Macabéa reforça a capacidade da escritora, que nasceu na Ucrânia e mudou-se para o Brasil com 12 anos, fugida da guerra naquele país, de colocar no papel sentimentos universais. Clarice, segundo os estudiosos e críticos, descortinou, ao assumir a imprecisão das palavras, temas ligados ao feminino e tantas questões existenciais que nem sempre dá para expressar.
“Diz e não diz”
“Algo marcante na obra da autora é como a linguagem que ela emprega diz e não diz. Como a linguagem falta e falha. Isso aparece em toda obra de Clarice Lispector. O grande tema dela é a palavra”, afirmou em entrevista à Agência Brasil, a professora de literatura Regina Pontieri, da Universidade de São Paulo (USP). Ela se dedica a pesquisar a autora há mais de três décadas. “A gente pode dizer que as grandes obras da literatura têm em comum a densidade. São obras com múltiplas camadas de sentido. Cada leitor vê de um jeito. Cada época revisita o autor e adequa às suas necessidades e à leitura de mundo feita naquele momento. A partir das expectativas dos leitores, é possível encontrar outras ressonâncias”, explica.
Regina Pontieri destaca que, após Clarice Lispector publicar Perto do Coração Selvagem (1943), primeiro trabalho dela, críticos ficaram surpresos com a escrita daquela autora até então desconhecida. Em janeiro de 1944, Sérgio Milliet escreveu que a obra era surpreendente, sóbria e penetrante. “Raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Por desta feita fiz uma que me enche de satisfação”, escreveu o crítico à época.
Álvaro Lins estranhou a linguagem e a organização, mas ressaltou qualidades no trabalho. “Não tenho receio de afirmar, todavia que o livro da Sra. Clarice Lispector é a primeira experiência definida que se faz no Brasil do moderno romance lírico, do romance que se acha dentro da tradição de um Joyce ou de uma Virgínia Woolf”.
Antonio Candido também viu semelhança com os autores estrangeiros e elogiou a novidade. “Em relação a Perto do Coração Selvagem, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é uma performance da melhor qualidade. A autora – ao que parece uma jovem estreante – colocou seriamente o problema do estilo e da expressão”, publicou Candido em julho de 1944.
Apaixonante e difícil
Os críticos explicavam que a técnica não determina a originalidade de uma obra. “Há alguns pontos de contato com James Joyce (escritor irlandês nascido em 1882 e falecido em 1941) e com Virgínia Woolf (britânica, que também viveu entre 1882 e 1941). Mas bastou a crítica ter uma visão maior para perecer que Clarice não era uma versão brasileira desses autores. Inclusive, seria uma relação de subalternidade pensar assim”, argumenta Regina Pontieri. A fama de uma escritora hermética e difícil percorreu a carreira de Clarice. E, como toda escritora referência na literatura mundial, suas obras causam incômodo.
“Ela é apaixonante e difícil. Algumas obras da Clarice são mais lidas. Há uma série de obras que colocam dificuldades para os leitores. Na minha pesquisa, me dediquei a uma das obras mais difíceis, A cidade sitiada (1949). É um tipo de dificuldade extremamente apaixonante. Acho que a Clarice causa realmente isso. É o oposto da indiferença”. O resultado desta pesquisa de Regina é o livro Uma Poética do Olhar.
A professora explica que o olhar empregado por Clarice não é o de sobrevoo, de um sujeito que vê o mundo de longe. “Clarice constrói um olhar demorado, agudo, insistente. Olhar tão fixo que ela come com os olhos. O que a Clarice faz é comer com os olhos. Ela olha com a boca. Assim ela opera a integração entre sujeito e objeto, entre corpo e espírito”.
Estranhamento?
Uma característica na narração de Clarice é o de estranhamento diante de acontecimentos do mundo. “Os grandes escritores têm dificuldades de encontrar leitores em sua época. O que faz a originalidade é reconstruir de uma forma nova. As pessoas têm resistência com o que é novo. O estranhamento é o que faz uma obra. Ela está apresentando um novo modo de olhar o mundo. Alguns leitores vão ficar instigados. Outros não”. Isso explicaria, portanto, o fato de que, com o passar do tempo, algumas obras, que eram consideradas muito difíceis, passam a ter maior inteligibilidade.
Para Regina Pontieri, não existem bandeiras evidentes na obra de Clarice. “De fato, os temas femininos e as várias situações de mulheres, as dificuldades vividas se encontram muito presentes desde o primeiro romance. Ela encena situações que são da vida de mulheres, em alguns casos, que experimentam uma vida como cidadã de segunda categoria”. Para além do fato de tratar de temas femininos, a pesquisadora explica que há uma dimensão metafísica que aborda temas integradamente.
“Tempo de morangos”
As obras da autora despertam paixão especial, no entender de Regina Pontieri, porque trata de questões existenciais. “Ela envolve a escrita com paixão. Os leitores quase afundam na cadeira a tal ponto que ela cativa. O leitor se sente Clarice Lispector”. Para quem quer começar a esmiuçar a obra da autora, a sugestão é começar pelos contos, como em Laços de Família. “Clarice é eterna como todos os grandes escritores. Sempre nos desperta. Este é um momento que a gente deveria reler. Não só ficar na internet. A literatura nos desafia. Quando a gente se pergunta, é porque estamos vivos”. A autora desafia a viver, respirar, pensar, aproveitar cada instante. Ou, em outras palavras possíveis, o encerramento de A Hora da Estrela é um exemplo da lembrança para viver o dia, o tempo, a estação: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim”.
(Luiz Claudio Ferreira – Brasília)