É uma aberração surpreendentemente agradável nessa megalópole intimidadora de onze milhões de habitantes que é São Paulo: em uma pracinha pitoresca, de frente para uma capela de 112 anos, um bar chamado Frangó oferece mesinhas de madeira em cantos aconchegantes, um cardápio com mais de 500 rótulos de cerveja e uma versão cantada em verso e prosa da famosa coxinha brasileira.
Apesar disso, quando meu amigo Oliver manda uma mensagem convidando um conhecido seu para nos encontrar, a resposta é curta e grossa: “Não frequento esses lados da cidade”.
“Esses lados” significa a Zona Norte, a região que, como o nome diz, fica ao norte do poluído rio Tietê, solenemente ignorada por turistas e moradores abastados, que preferem badalar nos bairros do sul e oeste da cidade. Em minha opinião, porém, a rejeição não passa de uma questão de má impressão: segundo os “sulistas”, o norte não é interessante o suficiente (não é verdade), é longe demais (fácil de chegar com a dobradinha metrô + ônibus ou uma corrida curta de táxi), perigoso demais (não se forem tomados os devidos cuidados, sim, mas o sul também não fica imune).
A geografia é semelhante na segunda maior cidade do Brasil, o Rio de Janeiro, onde a Zona Norte é praticamente ignorada em favor da Zona Sul, onde ficam as famosas praias de Copacabana e Ipanema e seus hotéis de luxo (os centros de ambas, que já foram bem caídos, estão sendo revitalizados, atraindo mais turistas).
Para mim, qualquer lugar que reúne milhões de pessoas vale uma espiada. Mais importante, tanto em São Paulo como no Rio, onde os preços dos bairros mais exclusivos deixam os turistas até mudos de espanto, as opções são bem mais em conta. Por isso, na minha última viagem ao Brasil, resolvi seguir para o norte – e descobri muita comida boa, charme cultural, belos cenários e, sim, até praias.
Rio de Janeiro
O pessoal da Zona Sul do Rio não pode ignorar o norte sumariamente por dois bons motivos: nunca vai assistir a uma partida de futebol no Maracanã, o estádio que vai sediar os jogos da Copa no ano que vem, nem ver o desfile das escolas de samba no Carnaval ali no Sambódromo.
Só que a região tem muito mais a oferecer. Essas mesmas escolas organizam ensaios semanais – que na verdade são mais uma desculpa para ouvir a bateria, dançar e beber cerveja – e a sede de algumas das mais famosas, como a Mangueira, fica no norte. Até uma opção de diversão mais elaborada pode ser encontrada em tempo integral, nos fins de semana, na feira de São Cristóvão (feiradesaocristovao.org.br), com comidas e música ao vivo típicas da região nordeste.
Até em plena segunda, dia em que cheguei à cidade, a festa não para. Fiquei na fila do Renascença Clube (renaclube.com.br), um clube tradicional de negros, para conferir o “Samba do Trabalhador” semanal – tradição que começou como uma roda informal de músicos no dia de folga. Seus integrantes continuam se sentando à mesa juntos, tocando violão, cantando, batucando em tamborins e surdos, cercados por fãs que pagam a bagatela de 10 reais para se aglomerarem no espaço ao ar livre.
A dança está sempre presente, mas o público parece satisfeito em simplesmente bater papo, cantar, beber e comer (os pratos são meio pesados, mas fartos e a bons preços; entre as opções, a boa e velha linguiça acebolada por R$ 15). Em meio à diversidade, achei todo mundo simpático (e, de quebra, conheci um gari e um professor de Geografia).
As praias do norte são bem diferentes de Ipanema. Antes de ir para o clube, passei quase o dia todo em Paquetá, ilha que fica na Baía de Guanabara, de fácil acesso graças à balsa que sai do centro (a viagem dura 45 min e custa R$4,50). Curiosidade: apesar de ser administrada pela Zona Central da prefeitura, com certeza é o ponto mais setentrional da cidade.
E embora em Ipanema se vejam prédios luxuosos, boutiques e restaurantes, nas ruas de terra batida de Paquetá, onde não podem circular carros (os turistas passeiam de carruagens puxadas a cavalo), há casarões do século 19, lojas que alugam bicicletas caindo aos pedaços (R$5/hora) e opções simples como um prato de peixe frito ou um belo bauru.
A população também é diferente; na balsa para Paquetá, sentei de frente para uma freira que também é enfermeira em um hospital que foi visitado pelo Papa (“Dei dois beijos nele!”, ela conta, sorridente). Mais tarde eu a vi na praia entre os sarados, em uma cena que seria para lá de inusitada em Ipanema, como também seria um pedalinho em formato de cisne a R$20/30 min. O cenário, porém, as montanhas à distância, as pedras perto da praia, é praticamente o mesmo.
São Paulo
Essa cidade é imensa e se espalha em todas as direções, dando a impressão de ser um mar sem fim de arranha-céus, mas em dias claros, é possível divisar a Serra da Cantareira lá no norte. É uma das poucas partes do que restou da Mata Atlântica, bioma subtropical que cobria todo o litoral do Brasil – e parte dela fica na Zona Norte.
A grande atração (ingresso a R$9) é a área ao redor da Pedra Grande. A partir da entrada, uma trilha de pouco mais de três quilômetros o levará a um rochedo largo de onde pode apreciar a vista: a floresta logo ali abaixo e, de repente, uma infinidade de torres de cimento e vidro que se estende ao horizonte. Se preferir, pegue um dos caminhos mais estreitos também perto da entrada e verá que a cidade desaparece completamente, deixando-o em meio a figueiras cobertas de trepadeiras e com os macacos chamando uns aos outros lá de cima.
Mais civilizado é o Mocotó (mocoto.com.br), um restaurante bem conceituado que consegue a façanha de não ser muito caro e atrair os “sulistas”. Rodrigo Oliveira, o chef que assumiu o restaurante de bairro do pai e o reformulou para ser bastante elogiado, agora viaja pelo mundo – e apesar das inúmeras ofertas, ele se recusa a sair da Vila Medeiros, bairro simples onde cresceu. Assim, são os ricos que vão até ele, como se fizessem parte de uma “aventura urbana ousada”.
Os preços subiram um pouco depois que começou o buchicho em torno da casa, mas se você dispensar as opções mais caras (menos a caipirinha do dia a R$12,90) pode comer muito bem por R$50. A versão de Oliveira para o escondidinho, carne seca refogada coberta com purê de mandioca gratinado, é impecável. Não dá para não pedir o “dadinho de tapioca”, cubinhos com queijo coalho frito e servido com um molho de pimenta agridoce.
No início deste ano, Oliveira abriu o Esquina Mocotó, um restaurante mais requintado e mais caro ao lado do antigo. Será que ele pensa em abrir uma filial no sul? “O Mocotó tem 40 anos. Só agora abrimos o Esquina Mocotó aqui do lado. Quem sabe daqui a 40 anos a gente abra uma casa lá? Talvez.”