“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Assinado pelo presidente Getúlio Vargas em plena ditadura do Estado Novo, o Artigo 54 do Decreto-Lei Nº3.199, de 14 de abril de 1941, que vigorou até a década de 70, limitava as modalidades liberadas para as mulheres.
Em 1965, na ditadura militar, o CND delimitou a linha que segregava o esporte feminino brasileiro: “Não é permitida [a mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball“, dizia a Deliberação nº7 do conselho.
A luta das mulheres para se inserir no mundo esportivo faz parte de uma série de reivindicações por direitos que mudaram sociedades ao redor do mundo no início do século 20. Em 1932, mesmo ano em que o voto feminino foi aprovado no Brasil, a nadadora Maria Lenk foi a primeira atleta a representar o país nos Jogos Olímpicos, em Los Angeles, Estados Unidos.
No Brasil, no entanto, a chegada da mulher às competições esportivas ocorreu mais lentamente que nos países da América do Norte e Europa, diz a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Katia Rubio. Ela diz que a proibição da prática esportiva deixou graves consequências, que atrasaram a história olímpica do país, mesmo depois que deixou de vigorar o decreto da Era Vargas.
“Mais do que qualquer coisa, há uma assimilação que tem muito mais força do que a própria lei. Mesmo com a lei caindo em desuso, as famílias não permitiam que as meninas praticassem o futebol ou outras modalidades. Entendia-se que ‘minha filha não é macho’, então ela não vai praticar esporte, não vai praticar o futebol, porque isso é coisa pra menino”, afirma Kátia.
As bases dessa exclusão vieram do próprio movimento olímpico, lembra a pesquisadora, e oscartolas do esporte valeram-se de falsos argumentos médicos para justificar a segregação. “O que se assiste na primeira metade do século 20 é a construção de discursos acadêmicos, principalmente da área médica, para dar essa justificativa que os homens do poder tinham para impedir a prática feminina.”
Katia resgata uma fala do barão Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos, para exemplificar tal posicionamento. “Quando Coubertin, em pessoa, em 1896, justifica a exclusão das mulheres dos Jogos, dizendo que tinham nervos frágeis, ele não se refere ao aspecto corporal. O argumento foi que as mulheres são histéricas, não podem competir porque competição é coisa pra macho, é coisa pra quem dá conta do embate.”
A exclusão feminina ocorria inclusive das modalidades em que as mulheres eram mais bem-vistas, como a natação e o tênis. “As brasileiras participavam do esporte de forma bastante seletiva. As que tinham acesso aos clubes [da classe média e da aristocracia] praticavam esporte como se praticava na Europa. Temos, aí, um conjunto de mulheres na natação, no tênis, nos saltos ornamentais, que vão inclusive se destacar nos Jogos Olímpicos.”
A pesquisadora da USP destaca que as mulheres vindas de camadas mais populares que conseguiram, de alguma forma, participar do esporte, competiram basicamente no atletismo.
Número 1 no tênis mundial
Quatro vezes número 1 do mundo, entre as décadas de 50 e 60, a paulista Maria Esther Bueno lembra que era difícil ter referências esportivas femininas na época em que se destacou no tênis. “Não tínhamos essas facilidades de mídia. Então, não teve inspiração nenhuma, a não ser eu gostar de fazer o que eu fazia”, diz a tenista, que diz ter se espelhado nela mesma e contado com o apoio da família e de amigos.
A mulher sempre praticou esporte, mas nunca teve o destaque dado aos homens, enfatiza a tenista, que conquistou sete títulos simples em torneios de Grand Slam. O termo Grand Slam é usado para o atleta que consegue vencer, no mesmo ano, os quatro principais torneios do tênis mundial, disputados em Melbourne (Austrália), Paris, Londres e Nova York (Estados Unidos),
Judô não era para elas
A judoca Rochelle Nunes (de brano), que ainda busca vaga para os Jogos do Rio, teve como inspiradora Keitlyn Quadros, que ganhou a primeira medalha feminina individual em uma Olimpíada
A lista de esportes proibidos caiu em 1971, mas as primeiras medalhas femininas em tais modalidades só chegaram em 2008, com o bronze de Ketleyn Quadros no judô e a prata da seleção feminina de futebol, em Pequim. Primeira brasileira a conquistar uma medalha olímpica individual, Ketleyn lembra que a carreira a colocou ao lado de suas maiores referências: as próprias judocas brasileiras.
“A gente se identifica com a gente mesmo, a cada hora, a gente está se superando, se dedicando. A inspiração são as próprias companheiras de viagem, as histórias delas, ver como elas treinam. Todo mundo junto. Isso motiva muito”, diz Ketleyn. No começo da carreira, a judoca Edinanci Silva era uma de suas heroínas. “Depois, tive oportunidade de fazer uma viagem com ela. Minha maior inspiração somos todas nós, do judô feminino, e fui parte de todo esse crescimento.”
Ketleyn ouviu muitas histórias de suas treinadoras sobre como a prática do judô pelas mulheres era discriminada. “Não sofri tanto quanto as [lutadoras de] gerações passadas. Diziam que era um esporte masculinizado, que não era para mulher, que era de muito contato. Isso existiu, mas eu entrei em uma fase em que essas batalhadoras já tinham chegado, e foi mais tranquilo.”
Outra judoca, Rochele Nunes, colega de Ketleyn na seleção brasileira, tem o trabalho desta como inspiração. “Foi a primeira medalhista do judô feminino e fez com que a modalidade tivesse um outro olhar. Talvez ninguém tivesse acreditado que ela pudesse subir ao pódio na Olimpíada. Eu me vejo assim também. Não creio ser favorita, mas acho que posso chegar longe”, diz Rochele, que ainda busca uma vaga para os Jogos do Rio de Janeiro.
Para Rochele, o judô feminino começou a crescer quando as atletas adquiram mais força física e houve mudança de mentalidade. A técnica mudou muito, afirma Rochele. “Quanto à força, tivemos que deixar de ter o braço mirradinho”, lembra a judoca, ao destacar a diferença de tratamento entre homens e mulheres nos treinamentos. “Não que a gente não suporte o treinamento, mas tinha que ser diferente. Temos uma ginecologista na seleção brasileira, uma psicóloga e técnicos que conversam conosco. Isso contribui muito.”
Meninas do vôlei: ouro em 2008
Fã de Fofão desde criança, Macris passou a colega da levantadora na seleção de vôlei
A levantadora Macrís Carneiro, do Brasília Vôlei, valoriza o caminho pavimentado pelas atletas das décadas anteriores, que enfrentaram machismo e dificuldades no esporte. “É admirável ver que hoje em dia as mulheres não fazem apenas o que era visto antigamente como função delas, mas que estão, cada vez mais, conquistando espaço e mostrando talento.”
No caso do vôlei, o caminho foi aberto por uma geração que enfrentou falta de apoio, de patrocínio e de resultados. Enquanto lutavam por um lugar ao sol, as atletas viram a seleção masculina conquistar a prata olímpica em 1984 e o ouro em 1992. A primeira medalha feminina veio em 1996: bronze, mas com brilho de ouro, trazida por um time em que estavam Márcia Fu, Ana Moser, Virna e Fofão.
Macrís cresceu admirando o estilo da levantadora Fofão. “Eu queria o autógrafo dela e consegui, quando ela jogava lá em São Caetano [SP]. Sempre a admirei pelo talento e pela simplicidade.” A relação de fã virou profissional quando as duas treinaram no mesmo time. “Ela [Fofão] é muito simples e acolhedora com todas. É firme nas atitudes mas consegue manter o carisma.”
Depois de duas medalhas de bronze (1996 e 2000), a de ouro veio em 2008. Fofão é a mulher mais vitoriosa do vôlei brasileiro em Olimpíadas. “O vôlei masculino tinha mais atenção, melhores salários, patrocinador, e a gente sabia que, enquanto não conquistasse alguma coisa, continuaria em segundo plano. Tivemos que lutar, mostrar capacidade, potencial”, recorda Fofão, já aposentada das quadras.
Como ocorreu no judô, as vitórias no vôlei só vieram com a conscientização de que era preciso extrair das mulheres a força que sempre existiu e que as leis e autoridades do esporte no passado insistiam em negar. “Entraram técnicos que mudaram a filosofia do vôlei feminino. Existia aquela coisa de mulher não ficar com muito músculo, de que a gente não gostava muito. Então, o treinamento mudou, para que a gente ganhasse mais força”, conta a ex-atleta. “No começo, houve uma resistência, ninguém aceitava, mas depois, conforme os resultados foram aparecendo e a qualidade do voleibol feminino foi melhorando, passamos a acreditar que isso tinha que fazer parte de nosso treinamento.”
Fofão não tem dúvida de que as mulheres conseguiram quebrar os preconceitos relativos a seu desempenho. “A mulher conquistou espaço. Antes era muito desacreditada”, lembra a campeã olímpica. “Sempre houve a impressão de que a mulher não conseguiria fazer coisas boas, mas as pessoas mudaram de ideia ao ver como a mulher é guerreira, lutadora e disciplinada quando se propõe a fazer algo.”
Rochele, que ainda busca a consagração olímpica, tem títulos em torneios nacionais e pan-americanos, afirma que no Brasil ainda existe muito preconceito com mulher, de um modo geral. “Mas, no esporte, a gente consegue dar a volta por cima porque não depende dos homens para ir bem. Dependemos de nós mesmas.”
Marcelo Brandão e Vinícius Lisboa – Repórteres da Agência Brasil