PATRÍCIA CAMPOS MELLO
enviada especial à base naval da baía de Guantánamo

Khalid Sheik Mohammed, o cérebro por trás dos atentados de 11 de Setembro, entra no tribunal militar de Guantánamo ostentando uma farta barba cor de laranja berrante.

KSM, como é conhecido, chega escoltado por dois guardas. O terrorista mais temido do mundo parece um bonequinho de Lego atarracado e sorridente.

Diz a tradição que o profeta Maomé tingia a barba com hena. Mas no Campo Sete, onde KSM e os outros detentos de “alta periculosidade” estão presos, é proibido usar “produtos de beleza”. Então especula-se que KSM estaria usando suco de romã ou de frutas vermelhas para tingir sua barba.

Acusado de arquitetar os atentados que levaram à morte de 2.996 pessoas em 2001, KSM parece relaxado. Faz rolinhos na barba com os dedos e papeia com seus advogados.

Ele e outros quatro detentos foram oficialmente acusados em maio de 2012. Walid bin Atash, 35, Ramzi bin al Shibh, 41; o sobrinho de KSM, Ammar al Baluchi, 35, e Mustafa al Hawsawi, 45, são acusados de ajudar no financiamento, recrutamento e na viagem de alguns dos 19 terroristas que sequestraram aviões em 2001. O governo americano pede a pena de morte para todos eles.

O principal promotor do caso, general Mark Martins, pressiona para que o “julgamento do século” comece em setembro de 2014. Mas o processo corre lentamente, com advogados contestando vários aspectos das chamadas “comissões militares”.

A reportagem da Folha está acompanhando as audiências em uma sala atrás do tribunal, de onde se veem os procedimentos através de um vidro grosso, à prova de ruídos. Os procedimentos são transmitidos por monitores de vídeo, mas o áudio tem um atraso de 40 segundos. Caso haja alguma declaração que ameace a segurança nacional, o juiz interrompe a transmissão do áudio. “É como um filme mal dublado. Você os vê falando, mas o som não vem”, compara uma jornalista.

“O senhor Mohammed não acredita que as comissões militares sejam um sistema legítimo –trata-se de um tribunal criado exclusivamente para executá-lo e proteger aqueles que o torturaram”, disse à Folha o major Jason Wright, advogado de KSM.

Segundo Wright, KSM fez confissões apenas depois de ter sido torturado seguidas vezes. Mesmo declarações que foram feitas após 2006, quando KSM e outros já não estavam nos chamados “black sites” da CIA, onde se admitiu que havia tortura, seriam comprometidas, diz. “E, mesmo que ele seja absolvido no julgamento, já deixaram claro que não será solto, que ficará indefinidamente preso.”

“Esse julgamento é uma palhaçada”, conclui.

KSM foi submetido a “waterboarding”, tortura que simula afogamento, 183 vezes, antes de o método ser banido. Enquanto era submetido ao “waterboarding”, KSM ficava contando até 40 com os dedos das mãos, para ridicularizar os interrogadores. Ele descobriu que, pelo manual de operações dos interrogadores, o tempo máximo para manter o suspeito “afogado” é de 40 segundos.

CONFISSÕES

Em 2008, em depoimento para determinar o status dos chamados “inimigos combatentes”, KSM se gabou de ter planejado “de A a Z” os ataques de 11 de Setembro. Também disse ser responsável pelo atentado ao World Trade Center em 1993, que causou a morte de seis pessoas, e as bombas na boate em Bali, na Indonésia, em 2002, que mataram 202 pessoas.

Disse também ter decapitado com a sua “abençoada mão direita” o judeu americano Daniel Pearl, em Karachi, no Paquistão. Pearl era um jornalista do diário americano “The Wall Street Journal” que foi assassinado em 2002. “Para aqueles que querem confirmar, há fotos na internet em que eu estou segurando a cabeça dele”, disse. KSM ainda diz ter planejado ataques para assassinar o papa João Paulo 2º nas Filipinas, além dos ex-presidentes americanos Jimmy Carter (1977-1981) e Bill Clinton (1993-2001).

“Eu sou inimigo da América, da presença militar dos EUA na Península Arábica e da ajuda a Israel”, disse KSM, segundo a transcrição do Pentágono. “Nós somos combatentes inimigos, é verdade. Mas muitos que estão aqui não são, foram presos injustamente.”

KSM se comparou a George Washington. E disse: “Eu não estou feliz que 3.000 pessoas foram mortas na América; como no cristianismo, matar é proibido no islã. Mas há uma exceção à regra quando se trata de matar pessoas no Iraque? É isso que vocês disseram. Quando vocês invadem dois terços do México, vocês chamam de ”destino manifesto”.”

Mas grande parte das confissões está sendo contestada pelos advogados de defesa e pode complicar o julgamento.

EXCENTRICIDADES

Às 13h30 na segunda-feira, KSM e os outros acusados estendem seus tapetes e começam a rezar virados para Meca, acomodando-se debaixo das mesas e cadeiras do tribunal.

KSM é famoso por suas excentricidades no tribunal de Guantánamo. Na audiência que a Folha presenciou, ele era o único dos detentos que usava um colete de estampa camuflada. Teve de obter autorização do juiz para isso. Segundo seus advogados, ele quer passa a mensagem de que é um combatente de guerra e, portanto, tem direito às proteções da Convenção de Genebra.

Na audiência de segunda-feira, ele não fez um de seus famosos discursos coléricos. Limitou-se a dizer “Na”am” (sim, em árabe), diante das perguntas do juiz.

No ano passado, KSM deixou claro saber que o chefe da rede Al Qaeda, Osama bin Laden, havia sido morto pelo governo americano. “Como o presidente pode pegar alguém e jogar no mar em nome da segurança nacional?”, disse, em referência ao fato de os restos mortais do saudita terem sido atirados no oceano.

Ele também se queixou de estar dormindo pouco e de que isso lhe causava “flashbacks” sobre a tortura a que foi submetido por agentes da CIA. O juiz concordou com o pedido de KSM de não ser despertado antes das 6h. Familiares das vítimas ficaram revoltados.

O major Jason Wright, advogado de KSM, disse à Folha que KSM é “um homem muito inteligente e religioso”.

KSM nasceu no Kuait, filho de paquistaneses da região do Baluquistão. Formou-se em engenharia mecânica nos EUA, na North Carolina Agricultural and Technical State University, nos anos 1980 . Depois foi para o Paquistão e para o Afeganistão, onde se juntou aos mujahideen (patrocinados pelos EUA) para combater a invasão soviética.

Foi nessa época que ele conheceu Bin Laden, na cidade de Peshawar, no Paquistão.

KSM foi capturado em 2003. De lá, foi transferido para prisões secretas da CIA na Polônia e Romênia. Só em 2006 chegou a Guantánamo, onde está até hoje no famigerado Campo Sete.

Segundo os EUA, com ele foi apreendido um disco rígido de computador com detalhes sobre os 19 sequestradores e os aviões empregados nos atentados de 11 de Setembro.