Organizar a agenda de endereços é sempre uma tarefa ingrata. Todo ano tenho que checar a minha, página por página, para conferir os nomes e dados dos meus contatos pessoais e profissionais. É como se estivesse na frente de uma tapeçaria, olhando os fios que ficaram e os que se perderam, só para perceber, com certo alarme, que a lista de nomes que tenho que riscar não para de crescer.
Eu vivo, como muita gente, num país de fuga. Uma ilha da qual saímos rumo a todas as direções, com um adeus definitivo, uma nação cujo número de imigrantes é cada vez maior do que o daqueles que decidem voltar. “Volver” (“voltar”) é um verbo conjugado por poucos aqui.
Embora a rota de exílio geralmente leve aos EUA, os cubanos estão indo para todo lugar. Um dia me surpreendi ao receber um e-mail de um grupo de conterrâneos que leem meu blog na Papua Nova Guiné. Trocaram uma ilha por outra. Se eu tivesse um mapa na parede da minha sala com um alfinete vermelho marcando todos os lugares do mundo onde meus amigos estão morando, daria a impressão de que o planeta pegou sarampo.
E os cubanos, é claro, não são os únicos. Este ano a ONU anunciou que há mais gente vivendo fora de seus países de origem do que nunca. As razões são muitas, entre elas a guerra ‒ como no Afeganistão e na Síria ‒ as dificuldades econômicas e a opressão dos Estados totalitários. Alguns, como os mais de 300 africanos que morreram afogados na ilha de Lampedusa há poucos meses, fazem parte da mesma estatística dos cubanos que perderam a vida no Estreito da Flórida, aqueles que abandonaram tudo através de meios precários, mas nunca conquistaram a chance de recomeçar.
Quando falamos de imigração, quase sempre pensamos nas circunstâncias que a pessoa vai enfrentar no país novo: as dificuldades com o idioma, seu estabelecimento na cultura, a obtenção dos documentos para legalização de sua situação; geralmente minimizamos o efeito na família e nos amigos que ficam para trás e meio que ignoramos a eterna questão do “e se…?”
“E se o Pedro ainda estivesse aqui?”
“E se a Maritza não tivesse ido para Nova York (ou Berlim), o que será que estaria fazendo?”
Eu vivi em exílio sob ambas as perspectivas: a daqueles que partiram e a daqueles que se despediram dos que foram e ficaram no aeroporto ‒ e podem acreditar, as duas experiências são emocionais e difíceis.
Sempre refutei a ideia de ser julgada em relação a detalhes sobre os quais não tenho nenhum controle: o fato de ser mulher, branca, baixinha, cubana e falar espanhol, por exemplo, mas foi minha a decisão de ser filóloga, de lançar um blog, de ter um filho, de aprender um pouco de alemão e até de voltar ao meu país dois anos depois de viver nas montanhas nevadas da Suíça.
À eventualidade de ter nascido em Cuba, agreguei minha decisão pessoal de viver aqui para ver meus netos crescerem nessas ruas e praças, mas há muita gente nesse mundo que tem a impressão de ter nascido no lugar errado.
O dilema é antigo: ficar no lugar de nossa identidade, onde conhecemos os costumes profundamente? Ou ir para terras distantes e desconhecidas, com a esperança de alcançar grandes conquistas pessoais? Frutos ou raízes? Parece que para os mais de 232 milhões de imigrantes que há no planeta no momento ‒ de acordo com a ONU, mais de 3% da população mundial ‒ a escolha são os frutos.
Em Cuba, ter um parente no exílio é muito mais útil que um diploma universitário. Uma brincadeira de duplo sentido muito comum no país é perguntar para alguém: “Você tem ‘fé’?” sem, na verdade, querer saber a religião da outra pessoa, mas sim se ela tem “familia (en el) extranjero” ‒ ou “familiar no estrangeiro”, cujas iniciais são FE, ou “fé” em espanhol. Quem tem pode comer um pouco melhor e se vestir com um pouco mais de estilo.
Minha família teve “fé” durante os dois anos que morei na Suíça, país onde me estabeleci com a ideia de fugir do meu. Embora as separações sejam sempre difíceis, há também os benefícios. Eu me lembro de ter dividido todos os pertences que acumulei ao longo dos anos entre meus parentes e amigos. Os 22 quilos permitidos pela companhia aérea não me permitiam levar muita coisa, então comecei a distribuir parte das minhas roupas, sapatos, livros e até as plantas da minha sacada. Cada peça era recebida como uma benção naqueles anos de dificuldades econômicas. Ah, sim, a imigração também desatravanca sua casa ‒ seja para doar aquela cama em que outros podem dormir ou o computador de que tanto precisa o sobrinho, o primo ou o vizinho.
Ao voltar do meu exílio autoimposto, fui recebida com alguns olhares tortos, como se aquelas pessoas temessem que fosse reclamar minhas coisas de volta. Foi assim que entendi que muitos daqueles que partem ajudam a família não só mandando dinheiro e presentes, mas também permitindo que quem ficou para trás aproveite tudo o que deixaram.
Nenhum relatório de nenhuma organização internacional vai poder definir esse aspecto tão pessoal da imigração ‒ nem refletir a vida dupla, dividida em dois, com que aqueles que deixam seu país têm que lidar, sabendo que somente escolhendo os frutos para si é que poderão expandir suas raízes.
Eu chamo esse fenômeno de “síndrome da imigração”, que se manifesta com mais força nos primeiros anos. Os meus sintomas se mostraram claramente, fazendo com que comparasse o tempo todo o que estava vivendo na minha cidade nova com o que meus familiares estavam sentindo naquele exato momento em Cuba. Sentar-me à frente de um prato farto e apetitoso era um dos momentos mais dolorosos do dia. O que será que a minha mãe estava comendo? Será que ela já tinha provado kiwi? Será que ia dormir de estômago vazio?
Nos meus devaneios diários, estabelecia um “câmbio permanente” que me fazia calcular o valor de cada franco suíço em termos de pesos cubanos ‒ e na minha obsessão, traduzia esse valor em horas de trabalho que meus familiares e conhecidos teriam que cumprir para ter o que eu tinha no “país do chocolate”: uma cerveja, dois dias para o meu pai, engenheiro ferroviário; uma maçã, oito horas para o meu vizinho que era cinegrafista de TV; uma barra de Toblerone, uma semana inteira para a minha irmã, que era farmacêutica.
Os frutos estavam ao meu alcance, suculentos, atraentes ‒ mas tão doloroso foi o processo de transplante de minhas raízes que não conseguia aproveitar o que tinha conquistado. Fiz as malas e mais uma vez espremi minha vida em 22 quilos. No último dia, deixei um livro de T.S. Eliot, companheiro de mais de quinze anos, num dos bancos da estação de trem de Zurique.
Sim, eu sou uma das poucas a voltar para essa ilha de fuga onde vivo. (Só em 2012, 46.662 cubanos imigraram, de acordo com o relatório demográfico anual da Agência Nacional de Estatísticas.)
Em 2014, essa tendência de buscar novos horizontes ‒ do sul ao norte, ou mesmo do sul para o sul ‒ sem dúvida deve continuar e crescer. É da natureza humana, está no nosso código genético procurar horizontes mais amplos e não nos confinarmos aos limites estreitos a que ficamos sujeitos pelo destino: um país, um idioma, uma cor de pele, uns centímetros a mais ou a menos na estatura.
Aqueles que partem, porém, devem saber que deixam para trás sentimentos contraditórios: saudade, preocupação, alegria, alívio ‒ e um mar de gente com pontinhos vermelhos no mapa da parede, com as melhores roupas separadas para o dia em que a pessoa querida voltar; gente que, ao final de cada ano, tem que refazer seus cadernos de endereços e apagar, apagar, apagar.
*Yoani Sánchez é jornalista e autora do blog Generación Y.
Tradutor: Mary Jo Porter