Você pagaria para correr quilômetros na total escuridão, ser insultado, roubado e perseguido, fugir de balas, cruzar túneis subterrâneos asfixiantes e atravessar a correnteza de um rio sob o calor e o frio extremos do deserto e o risco iminente da morte? O que é uma dura — e caríssima — experiência para milhares de latino-americanos que todos os anos tentam uma vida melhor se arriscando na fronteira entre o México e os Estados Unidos é oferecido como uma atração turística no Estado de Hidalgo por apenas 40 dólares.

Leia mais: Cuba encerra 2013 com menor taxa de mortalidade infantil da história

O Parque EcoAlberto fica mais especificamente em um vilarejo indígena conhecido como El Alberto e foi criado no começo dos anos 2000. A já bastante noticiada Caminhada Noturna, em que pessoas comuns se fazem passar por imigrantes clandestinos numa simulação do cruzamento de uma das fronteiras mais atribuladas do mundo, a que separa a falta de oportunidades do México da “terra de promessas” que é os EUA.

Reprodução

Os participantes do “tour” passam por situações comuns a imigrantes que tentam atravessar ilegalmente a fronteira com os EUA

O que pouco se falou sobre esse curioso serviço, na verdade, é o que motivou os moradores de El Alberto a criar o parque ecológico, com suas várias atividades, e também seus mais de 80 funcionários — todos mexicanos da região e com a experiência real de ter cruzado a fronteira algumas vezes na bagagem — a guiar, ofender ou perseguir turistas num teatro que simula uma grave tragédia social. Ao contrário do que se divulga e até do que se especula, essa iniciativa tragicômica aspira a um direito puro e simples: o de voltar para seu lugar de origem e aí construir uma vida.

Leia mais: Artista italiano cria “ensaio sensual” com os Simpsons

El Alberto é uma pequena cidade perdida no Valle del Mezquital, a aproximadamente mil quilômetros da fronteira estadounidense e a umas duas horas de viagem do DF, que lá por 2000 se viu mais parecido a uma cidade fantasma, totalmente abandonada, do que ao belo povoado que é, cercado de paisagens exuberantes e natureza convidativa. Cerca de 90% de seus habitantes, que são indígenas ñhañhu, tinham emigrado no passado para os EUA em busca de trabalho e sobrevivência. Por muitos anos, deram duro em cidades como Las Vegas, Boston e Salt Lake City, em construção civil, jardinagem ou o que fosse, e com isso juntaram experiência de vida, nostalgia de sua terra e dinheiro suficiente para voltar a El Alberto e fundar um parque turístico para contar a história.

Turismo de conscientização

O objetivo de inaugurar a Caminhada Noturna em 2004 e oferecer aos interessados, a maioria deles jovens, a chance de experimentar as dores de um imigrante é conscientizar aqueles que buscam “uma vida melhor em outro país”, estimulando-os a ficar em sua terra e aí aspirar a projetos produtivos que criem riqueza própria e levem em conta a comunidade. Por vezes muito criticados, os responsáveis pela ideia ressaltam ainda que é “para que as pessoas vejam um México que existe, mas que muitos não querem ver” e para “prestar uma homenagem aos que já imigraram”. Já os críticos, e aparentemente entre eles o mais ferrenho é o governo de Hidalgo, afirmam que o passeio caçoa das condições dos imigrantes e, além disso, proporciona treinamento para quem planeja cruzar a linha.

Nessa queda de braço, é quase impossível não se deixar sensibilizar por uma clara estatística: em apenas quatro anos de existência, o parque se estabeleceu e devolveu 50% da população de El Alberto, hoje uma cidade ainda esquecida, porém, auto-suficiente onde vivem cerca de 3 mil habitantes que investem seu dinheiro lá mesmo.

[Visitantes são submetidos a humilhações e outras situações vividas por imigrantes de verdade]

Retornados dos EUA com pequenas poupanças, eles construíram casas enormes que contrastam com as pobres moradias de pedra típicas de outros tempos, e criaram um cemitério de imigrantes, cujos corpos chegam do norte graças à embaixada mexicana.

Nacionais e estrangeiros de distintas origens vão pra lá também em busca de tirolesas, canions e banhos quentes, enquanto o simulacro da fronteira faz a fama do EcoAlberto. “Na realidade, nós os preparamos [os que fazem a Caminhada Noturna] para que fiquem no México e sejam auto-suficientes.

Quando é que o governo conseguiu algo parecido?”, provoca um porta-voz do parque. Para ele, esse é um negócio de “turismo de conscientização”, enquanto outros preferem as palavras “alternativo” ou “extremo”.

 

 

 

“Atreva-se a viver a experiência”

O slogan é “atreva-se a viver a experiência” e “aqui não se admite nenhum tipo de desânimo!”, repete-se ao longo do caminho. É a voz de quem sabe que uma vivência dessas é daquelas que respeitam o clichê “o que não te mata, te fortalece”. Exatamente o que a caminhada pretende condensar em 5 ou 10 horas de duração, dependendo do radicalismo da ocasião. Os turistas partem às 21h, se reúnem para uma chamada que os distribui em pickups, que por sua vez se dirigem a uma igreja onde os guias ou “coyotes” (traficantes de imigrantes) detalham o extremo cuidado que é preciso ter pra não se fazer matar ou então pior, entregar os companheiros à morte por algum descuido.

Daí o que se seguem são trilhas escuras, sobre ou sob a terra, na lama e na água, policiais que atiram e ladrões que roubam (ou as duas coisas misturadas). Alguns serão presos e deportados, outros se acidentarão e ficarão pelo caminho, pelo menos até o jogo terminar. Dos envolvidos na simulação da aventura, os turistas não sabem quem é quem, para assim reagirem melhor à “migra” (polícia fronteiriça), aos “levantadores” (agentes que dispersam os imigrantes em cidades norte-americanas depois de cruzarem) e aos assistencialistas e paramédicos, entre outros. “Você vai como cego, porque não vê nada do ambiente. Como mudo, porque não pode falar seu próprio idioma. E como surdo, porque falam com você em um idioma desconhecido. É incrível como, nessa situação, você tem que se adaptar às condições adversas”, descreve o porta-voz.

Quem teve essa vivência de verdade ou a observa de perto conta que a idade média para se encarar o real passo da fronteira no México é de 15 anos. As crianças crescem com a ideia do sonho americano e gastam muitos anos e esforços de vida para transformá-lo em sonho mexicano e enfim regressar ao seu país. Como fazer piada da existência de um parque como o EcoAlberto, capaz de transformar tanto sofrimento em símbolo e até de assumir o papel do estado e criar condições mínimas de vida? Tentador, mas como estamos acostumados a fazer, seria rir da própria desgraça.