Dá para fazer de tudo com um clássico da literatura. Adaptá-lo de maneira tão literal como possível, reinventá-lo com liberdade, ou usar apenas sua superfície mais óbvia de leitura. É a opção de Rob Letterman ao trazer para a tela um título famoso da literatura satírica como As Viagens de Gulliver, do irlandês Jonathan Swift (1667-1745).
No caso, significa recriar a experiência do herói em uma de suas viagens – a mais famosa – quando descobre uma civilização de homens minúsculos, Lilliput. Pelos seres minúsculos é aprisionado e depois se torna herói do local. No caso de Swift, o que havia de corrosivo em seu livro é que Lilliput era uma versão nada disfarçada da própria Inglaterra. Tudo nela é ironizado, incluindo a rivalidade extrema com a França, que produz um estado de guerra sem sentido, de acordo com Swift.
Num filme de verão, é claro que esse subtexto é limado, embora dele não esteja ausente de todo aquele pacifismo meio de fachada que é típico da ala liberal de Hollywood. Mas esse é um detalhe, que vem enfeitado sob a forma de um número musical. O propósito do filme é mesmo tomar uma boa e velha história, trazê-la tanto quanto possível para os dias de hoje e, como o tema se mostra propício, mandar bala nos efeitos especiais e na tecnologia do 3D.
No fundo, a estrutura da história é a clássica volta por cima do “loser”, o perdedor, essa palavra que é o pior xingamento que se pode fazer a um norte-americano. O Gulliver moderno parece ser um deles. Vegeta na seção de correspondência de uma publicação especializada em viagens. Vive apaixonado pela editora da revista, mas não tem coragem de se declarar. É meio gordinho, tímido e engraçado. Gosta de tocar guitarra-karaokê e é fissurado em seu smartphone. O aparelhinho, aliás, comparece nas cenas mais improváveis, em merchandising explícito de determinada marca.
A sátira inventada por Swift possibilita assim que o Gulliver-perdedor do século 21, o homenzinho humilhado dos escritórios, torne-se um colosso aos olhos lilliputianos. Agigantado, o fraco passa por valente. E pode, enfim, celebrar o relativismo de todas as coisas. Num mundo, eu sou pequeno. No outro, sou gigante. Num terceiro, sou menor que uma formiguinha. E assim por diante. Então está pronto o cenário para a redenção, essa outra grande mitologia da cultura norte-americana, que irriga generosamente o cinema, do western aos dramas amorosos. As “mensagens” se enfileiram. Ninguém deseja a guerra, nenhum emprego é inferior a outro, todos enfim se equivalem numa sociedade perfeita porque fornece oportunidade a todo mundo. São ideias, ou melhor, ideais, que vêm embutidos na textura de um filme em aparência inocente.
Visto apenas como divertimento, Viagens de Gulliver até que funciona bem. Os efeitos especiais são ok, nada de molde a impressionar, mas não se expõem ao trash. A não ser, talvez, nas cenas de batalha naval, quando fica muito visível que os navios são barquinhos de banheira. Mas isso talvez seja detalhe. Para o que o público infanto-juvenil deseja, um pouco de diversão e pipoca, o filme não deve decepcionar. Tivesse um pouco mais de ambição, não iria por isso perder o seu público-alvo e tiraria melhor proveito da mina de ouro ficcional legada por Swift.
Para quem se sinta estimulado pelo filme a procurar a obra original, uma boa notícia: Viagens de Gulliver acaba de ser lançado, com nova tradução de Paulo Henriques Britto, em edição Penguin & Cia das Letras. É um desses livros de tamanho médio, gostosos de manejar e conta com bom aparato crítico. Boas notas explicativas e introdução de Robert Demaria Jr. e – a cereja do bolo – um luminoso prefácio de George Orwell, o autor de 1984 e A Revolução dos Bichos.