No estágio inicial dos preparativos, a maior preocupação da Fifa em relação à Copa-2014 era o andamento das obras dos estádios, que ainda são um ponto de atenção. Depois, a dor de cabeça foi a aprovação da Lei Geral da Copa. Mais tarde, a relação entre o governo brasileiro, a Fifa e o COL (Comitê Organizador Local) tornou-se o empecilho para a organização. Agora, a principal questão é o sistema de venda de ingressos do Mundial, como fica claro em entrevista do secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, ao UOL Esporte.
Desta vez, o cartola vê falhas tanto dos torcedores quanto da própria Fifa. A ponto de dizer que os problemas no sistema da Copa das Confederações são uma vergonha para a entidade. Rindo, o francês faz piada e diz que deverá ser punido com o famoso “chute no traseiro” caso voltem a ocorrer essas falhas na negociação de bilhetes da Copa-2014, a partir de agosto deste ano. Lembre-se: ele afirmou, no ano passado, que o Brasil precisava de um chute no traseiro para acelerar as obras do Mundial, o que gerou um conflito diplomático.
Mas Valcke não vê falhas só da Fifa. Reclama do fato de boa parte dos brasileiros, mais de 200 mil até quarta-feira, ter comprado ingressos da Copa das Confederações e ainda não ter recolhido os bilhetes. E teme problemas de segurança ou um “desastre” se houver muitos lugares vazios nos jogos do final de semana pela competição.
UOL Esporte: Gostaria que o senhor apontasse os pontos positivos e os negativos nos preparativos para a Copa das Confederações a três dias da competição
Jérôme Valcke : Não há nada que mostre que a Copa das Confederações está sob risco. O que posso dizer é que alguns dos centros de ingressos foram abertos um pouco tarde. Não ajuda para a operação do dia a dia. As pessoas estão trabalhando 24 horas por dia, o que é necessário durante uma competição. Mas, sem esse tipo de comprometimento do COL, da Fifa e das cidades-sede, seria potencialmente um problema.
É por isso que estamos cobrando tão duro dos outros seis estádios que sobraram, para ter certeza de que as pessoas entendam que você precisa de tempo. Não dá para fazer as coisas nos últimos minutos. Precisa de tempo. A questão que temos é com a cultura no Brasil, onde pessoas não pegaram os ingressos do jogo que será no dia 16 [México e Itália]. Isso é um problema. Se tem muito tempo para botar as coisas no lugar, você pode ficar mais relaxado na organização.
A Copa das Confederações vai ocorrer, os estádios estão lindos. Parte da mídia diz que há coisas para serem construídas em volta do estádio. Vai acontecer depois. Temos o que é necessário para realizar a Copa das Confederações. Nós ainda estamos testando o sistema de ingressos e de acesso aos estádios. Alguns ainda não foram testados. Você pode dizer ‘Uau, três dias antes do jogo em que haverá 60 mil pessoas com acesso do estádio’. Pode dizer que está tarde. Volto para o meu primeiro ponto: receber estádios tarde significa que não vai ter a mesma flexibilidade para testar toda a infraestrutura.
Jérôme Valcke: Para a Copa, não dá para recebermos o estádio em maio. É tecnicamente impossível. Vimos em TI (sistemas de Tecnologia da Informação) que estamos atrás do cronograma. Essa coisa na mesa (aponta para um telefone de conference call) parece que funciona, há uma luz verde, mas, quando você vai usar, não funciona. Não podemos enfrentar isso. Todos no Brasil e a mídia vão dizer que não é normal que não funcione. Por isso nosso compromisso é para que tudo funcione, não metade.
UOL Esporte: Para a Copa das Confederações não teremos isso (funcionamento perfeito de todas as operações), mas para a Copa vamos ter?
Jérôme Valcke: Para a Copa, vamos ter com certeza. Se a Copa das Confederações não existisse, deveríamos inventar. A Copa das Confederações é um grande evento esportivo, com os campeões continentais. Mas a Copa das Confederações é definitvamente o evento que usaremos para sentar depois e analisar o que não está funcionando e o que está funcionando.
UOL Esporte: A maior preocupação da Fifa agora são os outros seis estádios remanescentes?
Jérôme Valcke: É também analisar o que não funcionou nos seis estádios da Copa das Confederações. Os seis estádios da Copa das Confederações não são estádios que vamos parar de olhar. Pelo menos já sabemos o que funciona e como funciona. Sabemos o que potencialmente pode não funcionar. Vamos olhar para ter certeza de que estejam prontos. É verdade que Brasília precisa de trabalho em volta do estádio e o Maracanã precisa de trabalho fora. Mas é detalhe. Eu tenho que admitir que, quando eu vi o Maracanã em março, eu nunca achei que o Maracanã conseguiria. Eles conseguiram.
UOL Esporte: O senhor acha que os brasileiros só trabalham bem com prazos apertados?
Jérôme Valcke: Não diria prazos. Quando encontramos o governador Cabral e o prefeito Paes (do Rio de Janeiro), em março, entendemos que estávamos atrás no cronograma. Então, passaram a ter encontros regulares entre o COL e a cidade-sede para trabalhar como um grupo, para fazer acontecer. A grande coisa é que hoje não vejo nenhuma diferença de abordagem na Copa entre o Brasil e a Fifa.
UOL Esporte: O senhor falou de ingressos. O senhor acha que há itens a serem melhorados no sistema de ingressos para a Copa do Mundo, já que foram notados problemas na Copa das Confederações? E houve problemas na África do Sul…
Jérôme Valcke: Eu diria da seguinte uma forma: é uma vergonha para a Fifa. Não deveria acontecer. Estou falando de aprendizado, de a Fifa ser profissional, de como nós dizemos as pessoas como organizar a Copa, etc. Não estou muito orgulhoso. O que enfrentamos na África do Sul, os problemas que tivemos, agora enfrentamos de novo no Brasil. É um nonsense. Se há uma mensagem que passo para o meu time, é de que não pode acontecer. Quando começar a venda de ingressos no dia 20 de agosto para a Copa, precisa funcionar para cada pessoa. Se o sistema tiver um colapso, se o sistema falhar, então eu aceito receber um chute no traseiro (risos).
UOL Esporte: Como o senhor vê o papel da Match (operadora da venda de ingressos)? Se não funcionou tão bem na África do Sul, por que a Match foi mantida?
Jérôme Valcke: Contando tudo, funcionou. Vocês veem a única parte que não funcionou e vocês esquecem de todo o resto. Há dúzias de pess oas aqui que trabalharam. Ingressos não são fáceis, não é uma parte fácil da Copa. Você veja o que aconteceu com o COI (Comitê Olímpico Internacional) em Londres. Eles estão tentando achar uma nova solução para o Rio-2016. Nenhum de nós têm a solução perfeita para ingressos.
A Match é uma das raras empresas trabalhando com ingressos. E eles estão indo bem. Por isso que continuamos a trabalhar com eles por um longo tempo e potencialmente no futuro. A questão é que você está submetido à tecnologia e está submetido a uma alta demanda. Se você sabe que há uma alta demanda, ponha uma infraestrutura que não colapse quando há 1 milhão de pessoas pedindo ingressos no mesmo minuto. Mesmo assim, gosh (Deus!), é muito dinheiro gasto com ingressos porque, se não fizer e o sistema não aguentar a demanda, a imagem que vamos passar não será boa. É o que as pessoas vão pegar. Na África do Sul, houve pessoas fazendo filas à noite. E eu e Danny Jordan (presidente do COL da África do Sul) fomos à fila e ficamos uma hora com elas, esperando no frio em Johanesburgo. E foi triste para elas.
UOL Esporte: Na questão política, o que aconteceu quando Ricardo Teixeira deixou a presidência da CBF e do COL, em março do ano passado, e qual foi o impacto na Copa-2014?
Jérôme Valcke: Quando Teixeira saiu? No final, a Copa não é sobre pessoas. Se amanhã eu tiver um ataque do coração no Rio, a Copa vai acontecer. Se algum de nós desaparecer, a Copa vai acontecer. Todos podemos ser substituídos.
UOL Esporte: Mas o que mudou com a saída do ex-presidente da CBF?
Jérôme Valcke: Mudou que deu talvez mais liberdade para Ricardo Trade (diretor executivo do COL) para trabalhar no papel central da organização. Mas não acho que mudou muito. Estava em uma fase que estávamos aprendendo a trabalhar juntos, Brasil e Fifa. Potencialmente, se ele tivesse saído depois, seria mais difícil. Mas era uma fase que era mais fácil lidar com sua saída.
UOL Esporte: E como o senhor sentiu a saída de Teixeira, já que tinha uma relação pessoal com ele?
Jérôme Valcke: Na vida, você pode ser amigo de uma pessoa e não significa que, quando a pessoa não está mais lá, você vai ficar solitário. No final, eu posso ter uma relação pessoal com você e, no tempo em que estamos trabalhando, podemos mudar, discutir, brigar. Entendo a situação. Eu nunca disse uma palavra sobre o que aconteceu com Ricardo e não vou dizer uma palavra. É algo que aconteceu no Brasil. A Copa é maior do que qualquer pessoa no mundo. A Copa vai além de indivíduos.
UOL Esporte: Há um substituto: José Maria Marin. Ele enfrenta acusações não relacionadas ao futebol. Como isso impacta na Copa?
Jérôme Valcke: Não acho que impacta na imagem da Copa. Acho que potencialmente pode impactar no futebol brasileiro. É um problema brasileiro. Você não vê nenhum dos seus colegas no mundo falando sobre isso. Nem em jornais ingleses, nem em jornais alemães.
UOL Esporte: Eles talvez não o conheçam bem ainda…
Jérôme Valcke: Não. Mas isso é sobre política. É sobre o Brasil e uma questão entre Marin, Del Nero, a mídia no Brasil, Andres Sanchez (ex-presidente do Corinthians) e a presidência da CBF. É política. Quando se fala sobre a organização da Copa, não há política. Eu não faço política para fazer a Copa. A única política que faço é para obter o apoio do governo federal, estadual, municipal, etc. Mas o impacto na Copa é nenhum. O impacto no futebol brasileiro… É a mídia brasileira que criou a situação. O povo brasileiro, se perguntar a eles, a lembrança é outra: é impressionante como 1950 ainda está na lembrança. E não está só na lembrança de quem viveu, mas de todas as idades. O objetivo de todo brasileiro é que, não só o Brasil jogue a final no Maracanã, mas que ganhe, que alivie o futebol brasileiro da memória de 1950.
UOL Esporte: Já que o senhor falou nisso, a Fifa sabe que a performance do time brasileiro terá um impacto no sucesso da Copa. Como o senhor vê o time brasileiro?
Jérôme Valcke: Como um francês, eu vejo o Brasil como um time forte, porque saímos do estádio com três gols [menção ao amistoso do último domingo, em Porto Alegre] no bolso (risos). O time brasileiro… Ouvi o que Pelé disse sobre como são grandes jogadores que precisam aprender a jogar juntos. Isso é a questão quando a maioria dos jogadores não joga em casa. Eles se encontram quando vestem a camisa do time nacional e têm poucos dias para competições internacionais. Essa é a força da Espanha que, em sua maioria, joga em Barcelona.
UOL Esporte: Depois da Copa, como o senhor imagina a evolução do futebol brasileiro? Na África do Sul, não houve grande mudança, mas o Brasil é um grande mercado…
Jérôme Valcke: A economia do Brasil é diferente. Você ; tem a impressão de que, pela primeira vez, a economia é tão forte que os clubes têm dinheiro. Veja o que a Globo paga pelos direitos de TV. É o mesmo dinheiro para, acho, para a Série A da Itália, o mesmo da Liga da França. Vocês estão no topo. Então, temos um relatório de transferência. E temos majoritárias transferências vindo do Brasil e Argentina. O Brasil está na frente, mas há uma redução do número de jogadores [saindo]. O Brasil consegue atrair os jogadores a ficar. Neymar está saindo, mas ficou alguns anos. E entendi do Aldo Rebelo (ministro do Esporte) que há um desejo do governo de ajudar a liga nacional. E a Fifa está conversando com a Conmebol para melhorar o futebol sul-americano. Desenvolver o futebol na América do Sul para que não seja só uma plataforma para treinar pessoas e mandá-las para a Europa.
UOL Esporte: O que a Fifa pode fazer?
Jérôme Valcke: Não há futebol sem trabalho com gramados. Estamos trabalhando com grupos de empresas da área, para criar infraestrutura. É chave que o futebol volte para a escola, seja o principal esporte. Se for o caso, pode fazer uma estrutura forte com a escola. Podemos trabalhar nisso. Temos pessoas profissionais para todos os níveis, desde árbitros. É o que fazemos em todos os níveis.
UOL Esporte: O que pode ser feito em relação ao calendário? Um país que tem um campeonato que está entre as cinco maiores ligas pode ter partidas da seleção ocorrendo no mesmo final de semana do torneio nacional?
Jérôme Valcke: O problema é que há muito futebol. Há muitos jogos. Quando trabalhamos no calendário depois de 2014, sentamos com clubes e associações para finalizar um calendário. Há tanto futebol que há um confronto de datas. Nós queremos o princípio da obrigação de liberar os jogadores e não vamos desistir. Em reconhecimento ao que os clubes fizeram, aceitamos dividir o lucro com eles na África do Sul.
UOL Esporte: Para finalizar, voltamos à Copa do Mundo. O senhor falou de ingressos e de TI (Tecnologia da Informação). Mas qual a sua principal preocupação para a Copa-2014?
Jérôme Valcke: A maior preocuação não é sobre a organização da Copa. É a informação do meu pessoal de que 31 mil ingressos que foram vendidos e pagos para Itália e México não foram coletados. Então, estou muito preocupado. Porque, se temos o Maracanã com 31 mil lugares vazios, é um desastre, um pesadelo. Não é a imagem que queremos passar do Brasil, não é a imagem que queremos passar da Copa do Mundo para os outros países.
Então, precisamos trabalhar – e para isso precisamos da mídia, e estamos trabalhando junto com a Globo – para informar que, quando você entrar no estádio, não poderá sentar em qualquer lugar. Os lugares estão reservados. Quando compra o seu ingresso, tem que pegar. E, se você acha que pode pegar, como qualquer jogo da liga do Brasil no dia do jogo, não vai acontecer com a Fifa. Por razões de segurança, não porque somos a Fifa e queremos impor regras. Imaginem 10 mil pessoas em volta do estádio querendo recolher ingressos e o sistema tem um colapso, o que fazer? Não tem os ingressos impressos. Imagine a irritação das pessoas em volta do estádio. Então, teria um problema de segurança. Então, enfrentamos problemas práticos.
Se vamos ter uma grande festa, vamos reconhecer que todos temos algo a fazer. E, para os brasileiros, é recolher seus ingressos agora. E não esperar o dia do jogo. O resto, para mim está legal. Estamos trabalhando na operação da Copa das Confederações diariamente. Você não verá nada [problemas]. Mas eu verei um monte. Eu terei o feedback da minha equipe. Temos que fazer isso. Tenho certeza de que você ficará muito infeliz se o que ocorreu no primeiro jogo-teste em Fortaleza, em que não funcionou a rede de telecomunicações 3G, voltar a ocorrer. Não porque quero ligar para a minha mulher. Mas porque tem que funcionar para a televisão, para a mídia.
UOL Esporte: O senhor acha então que os sistemas de TI podem não funcionar 100% na Copa das Confederações?
Jérôme Valcke: Podem não funcionar 100% na Copa das Confederações. Mas têm que funcionar 150% na Copa do Mundo. E, de novo, espero que no final da Copa das Confederações, olhemos não só o que o time brasileiro fez, e que o ponto não seja destruir o que foi feito, dizer “isso, isso e isso não funcionou’, mas apontar que ‘isso, isso e isso tem que funcionar na Copa-2014’.