Ainda, menino entre sete a oito anos de idade, lembra-me com absoluta clareza daquela figura ímpar. Era um dos responsáveis pela conservação dos jardins da única Praça da cidade. Cuidava-os com extremo carinho. Cultivava e aguava as plantas. Podava as roseiras. Protegia o gramado das brincadeiras malvadas das crianças, desestimulando-as a prosseguirem nas traquinagens infantis, sob pitos e carreirões.

Puro afro descendente. Sem nenhuma mistura racial. Da negritude de sua pele emergia o belo brilho característico da raça africana. Brotava-lhe facilmente, sempre, o sorriso simpático e aberto.

Tenho presente na memória seu antigo relógio ômega, datado do início do século XX que tirava vez ou outra do bolso. Como também, seu chapéu e jaqueta vermelha, ambos em couro.

Admirava-o intensamente, principalmente por sua postura ética. Era assim, Avelino. Velho negro de mais de cem anos de idade que teimava em trabalhar com empenho admirável cuidando da beleza das flores, conservação do gramado e das árvores ornamentais. Lutava com galhardia para zelar daquele pedaço de paraíso.

Extremamente tímido, não me aliava aos moleques que o provocavam, pisando na grama, a fim de se divertirem com as advertências e correrias do velho negro. Ao contrário, aguardava ansiosamente os intervalos de seu labor para sentar-me a seu lado em um dos bancos da praça, e, enriquecia-me com as revelações de seu passado. Transmitia-me suas memórias, recepcionadas em minha mente como uma espécie de filme de cinema tridimensional. Conseguia ter presente as imagens de seus relatos. Indubitavelmente, seus contos contribuíram de forma decisiva para minha formação ética.

Avelino nascera em uma senzala construída em uma das fazendas no município de Jaú, durante a Lei do Ventre Livre. Filho de pais escravos sofreu com grande intensidade as dores e as injustiças repugnantes da escravidão. Tantas vezes, viu seus pais açoitados pelos feitores em sinal de castigo por supostas desobediências.

Em resposta ao sofrimento causado pelas distorções sociais, só transmitiu amor cuidando com carinho dos jardins da praça, principal ponto de concentração da comunidade na ocasião.

Soa-me, ainda, sua voz gutural, relatando os fatos abomináveis e vergonhosos do passado. Ecoa-me sua gargalhada incessante, traduzindo revolta e incompreensão com tamanha brutalidade.

As gargalhas substituíam as frases: Por quê? Para quê? Como se admite injustiça sem fim? Em nome de que?

Já na adolescência soube que Avelino adoecera e perecera.
Não houve manifestações de louvor ou homenagens. A despeito de ter contribuído para a história da cidade, protegendo a praça, vivido o terror da escravidão, sua morte passara-se sem alarde, silenciosamente.

Não existe rua com seu nome, que sequer faz parte da história oficial do município. Porém, em meu coração sempre haverá um lugar reservado para Avelino. Suas gargalhas denotando revolta exigem-me que repudie a injustiça, a hipocrisia e a desigualdade. Por isso, nunca me convenceu a história do Brasil contada em salas de aula.

A lei do ventre livre foi uma grande hipocrisia, haja vista que não há como ser livre, morando com pais escravos. A lei da abolição uma farsa, visto que colocou nas ruas um contingente enorme de famílias sem dotá-las de recursos mínimos de subsistência, substituindo-as por mão-de-obra remunerada importada da Europa.

Como não me convence o sistema de quotas para negros nas universidades públicas, legalizando o apartheid no país.

O preconceito não se acaba por meio de preceitos de lei ou políticas públicas que estimulam novos preconceitos.

Só vai acabar com a transformação ética dos cidadãos. Quando todos entenderem que só existe uma raça – a humana. E só uma religião – o amor.

Quando construirmos sociedade sem rótulos. Sem divisões entre ricos e pobres, brancos e negros, homossexuais e heterossexuais, judeus, cristãos e islâmicos, homens e mulheres, etc.

Que Deus nos ilumine para nos livrar do fardo horrendo do preconceito. Grato, Avelino, por auxiliar a me conduzir pelo caminho da ética.

*Morador de Junqueirópolis