Eu estava prestes a completar oito anos de idade quando abracei meu pai pela primeira vez. Durante praticamente oito anos, a ditadura nos afastou, impediu o amoroso contato de um pai e seu filho. Meu pai ficou sob a tortura, separado da minha mãe por 11 meses. Um tempo depois de sair, teve de partir para o exílio, enquanto minha mãe já estava grávida de mim. Ela resolveu ficar em São Paulo, onde nasci. Meu pai ficou exilado nos Estados Unidos e depois na Suíça e só pode regressar, de passagem pelo Brasil, após a anistia. Nesse dia, o vi chorar pela primeira vez.
Nos três anos iniciais da minha vida, praticamente não tive um endereço permanente – para escapar da repressão, minha mãe, que também militava nos grupos de contestação à ditadura, mudava-se constantemente. Fui, como tantos outros, uma das crianças da resistência. E muitos são os significados de ser filho de pais da resistência, separados pela ditadura. Em primeiro lugar, por força das circunstâncias, ganhei uma consciência política de maneira tão precoce quanto natural. Desde muito cedo, tinham de me explicar o que era ditadura, o que era a luta pela democracia, para compreender a distância do meu pai.
Aos quatro anos de idade, minha avó paterna me ensinou a ler e a escrever para poder me comunicar com meu pai. Nas cartas e presentes que chegavam, vivi um pouco da sua vida no exterior – soube que ele falava outra língua, convivia com outra realidade e fui informado que tinha ganhado uma madrasta americana, um irmão, e depois outro. Pude abraçar minha madrasta anos antes de poder abraçar meu pai e meus irmãos.
Nas cartas que enviava, dividi com ele minha infância no Butantã, o bom desempenho escolar, o fim dos 23 anos de fila do Corinthians no campeonato paulista de 1977 e as férias no litoral com minha mãe e meu padrasto. Sabia que essa separação entre pai e filho era consequência de um regime ditatorial, que nos priva da liberdade, que persegue e mata quem tem ideias diferentes.
Também tive histórias engraçadas. Muitas vezes, nossa comunicação era por fita cassete. A gente gravava e algum amigo levava para fora. Outros traziam fitas do meu pai – e foi assim que ouvi pela primeira vez a voz dos meus irmãos, e eles a minha. Um dia, quando já tinha mais de dez anos e meu pai tinha voltado para o Brasil, estava jogando bola com eles no quintal da casa da minha avó, e o mais novo perguntou: “Ô Alexandre, como você jogava futebol quando vivia naquela caixinha?”. A caixinha era o gravador e, na inocência de um garoto de quatro anos, era lá que o irmão dele morava porque era daquele alto falante que saía a voz.
Como outras crianças da resistência, tive o privilégio de ter uma família muito ampla. Tenho incontáveis tios da resistência – aqueles solidários amigos e amigas da minha mãe e do meu pai. Eram pessoas que se arriscavam para levar e trazer essas cartas e fitas cassetes, sabedores do valor do diálogo entre um pai e seu filho, entre os irmãos, entre as famílias. Gente que nos acolhia com afeto, que nos protegia nas piores horas porque compartilhava entre si o sentimento de viver perseguido, censurado, agredido. Sou muito grato a todos eles.
Como o doutor Ulysses Guimarães, também tenho ódio e nojo da ditadura. Mas não carrego ressentimento. Conto essas histórias com leveza. Tive uma infância incomum, e ela me proporcionou valores firmes: acredito nos benefícios do diálogo, na defesa irrestrita da liberdade de imprensa e opinião, na possibilidade das pessoas reverem suas posições, no valor dos partidos, na capacidade transformadora da sociedade civil. Vivi intensamente a campanha da anistia, as diretas-já e fui às ruas, como líder estudantil carapintada, para tirar um presidente da República do poder, pela força da democracia. Quando ministro da coordenação política do governo Lula, valorizei o diálogo com deputados, senadores, empresários e trabalhadores no Conselhão. Ao lutar pela democracia, meus pais ergueram biografias que os engrandecem. Tenho orgulho da vitória que eles ajudaram a construir.
*foi ministro das Relações Institucionais do presidente Lula, ministro da Saúde da presidenta Dilma e é o coordenador da Caravana Horizonte Paulista.