Que no seu nascimento era branca. Pensou nisso enquanto dobrava e guardava o pedido de ultrassonografia da mão e ombro e joelho que o médico acabara de passar. Sim, tudo no singular: a mão esquerda e ombro direito. Pensou também que os médicos, hoje em dia, não sabem diagnosticar nada sem o auxílio de um exame de alto custo, ao mesmo tempo em que reconhecia ser um exame desses bastante eficiente para revelar se havia ou não uma lesão mais série em um algum tendão.

Quando caiu com a bicicleta azul naquela quarta-feira em que fora ao sebo de livros, só deu atenção ao ferimento no joelho, que sangrara razoavelmente. Na ocasião, jogou álcool que pegou emprestado na lanchonete da rodoviária e deu o assunto por encerrado.
Agora, mais de 30 dias depois do acidente, a mão ainda doía muito e se viu obrigado a procurar pelo ortopedista. O ombro também doía muito; já o joelho direito apresentava dores há uns três anos, seguramente. Mas não atrapalhava o pedalar.
Pensou nos riscos de se pedalar nas cidades atualmente, devido ao número exagerado de veículos de quatro ou mais rodas atulhando as vias de rolamento. Aí lembrou dos anos 1980, quando se deslocava de bicicleta entre a casa e o trabalho, num percurso de 14 quilômetros só de ida, bastante tranquilo naquela época, em que coabitavam pacificamente ônibus, automóveis (particulares e taxis) e bicicletas. Além de motos e carroças. Detalhando mais essas lembranças, supôs que naquela época a proporção de carros x ônibus era bem menor que hoje, talvez por isso o trânsito fluísse melhor e fosse amigável ao ciclista, não era essa quase guerra que estamos vendo hoje.
Estava bastante preocupado com essa dor na mão esquerda, pois a se confirmar uma lesão mais séria (Deus o livre!), teria que adiar seu projeto de voltar às estradas em cerca de 60 dias, já sofrendo antecipadamente, o que lhe era peculiar. Aborrecia-se muito quando se via impedido de pedalar, fosse qual o motivo: chuva, um compromisso que obrigasse o uso de automóvel. Mas um impedimento por motivo de saúde lhe aborreceria em dobro, pois significava despesa imprevista, o que acabaria por adiar mais ainda o retorno às estradas.
Ficar em casa era um sacrifício acima do razoável, pois não gostava de televisão nem de jogar dominó, damas ou truco, ocupações mais comuns entre aposentados. Refugiava-se no computador ou na leitura de bons livros, mas essas eram atividades sedentárias, a lhe roubar as condições físicas necessárias para o pedalar para lugares bem distantes. Distantes de quê mesmo? Da mesmice do dia a dia, da enfadonha rotina de repetir o mesmo caminho, quase as mesmas passadas, ao levar o cachorro ao passeio diário, comprar pão, remédios e suprimentos para casa, encontrar os mesmos rostos cansados de suas rotinas, vez ou outra quebrada com uma ida a algum médico, praticamente a única variação em seus deslocamentos de casa, pois há muito perdera o gosto por festas, cinema, restaurantes, diversão fora de casa. E esse desgosto se dera paulatina e principalmente à medida que se tornava difícil o deslocamento viário em cidade grande, as filas cada vez maiores, os preços idem.
O pedalar por grandes distâncias e períodos lhe trouxera uma nova abordagem do viver.

*Técnico em informática e ciclista que pedalou por diversas cidades do estado de São Paulo.