O último fim-de-semana trouxe para toda a comunidade unespiana – e para a sociedade brasileira – a triste notícia de que seis estudantes do câmpus da Unesp em Bauru, que participavam de uma festa do tipo open bar, receberam atendimento devido a um quadro de coma alcoólico. Infelizmente, um desses jovens morreu em coma alcoólico e outros cinco sobreviveram, felizmente, apesar de internados em coma alcoólico e com possíveis sequelas. Um em seis, como nas probabilidades da roleta russa.
A roleta russa é um jogo de azar potencialmente letal, provavelmente inventado na Rússia no século XIX. Consiste em colocar apenas uma bala no tambor de um revólver, girar o tambor (como uma roleta de cassino), apoiar o cano na cabeça e apertar o gatilho. De acordo com a matemática, há uma probabilidade de cerca de 1 para 6 de que o disparo seja fatal. Nos outros casos não há nenhuma consequência deletéria para o “apostador”.
Com o passar do tempo, a roleta russa deixou de ser interessante, mas não desapareceu completamente, transformou-se. Atualmente suas variantes mais populares são os chamados “open bars” e o sexo sem proteção. A principal diferença entre a versão original e as atuais é que, mesmo que o “apostador” não morra, há diversas consequências nefastas, a curto, médio e longo prazo.
A ignorância – no sentido de desconhecimento – certamente teve um papel importante, tanto de parte dos organizadores dessa nova forma de barbárie como de parte de suas vítimas. Quantos jovens sabem exatamente os riscos que correm ao tomar bebidas alcoólicas? Quantos sabem os limites do o corpo humano pode aguentar, em temos de bebidas alcoólicas?
De acordo com notícias veiculadas pela mídia e pelas redes sociais, o evento já se anunciava como um open bar: pague pelo ingresso e beba quanto quiser (ou aguentar). Ainda de acordo com essas mesmas fontes, anunciava-se uma Maratoma (com M mesmo, não N!) e um “campeonato” de ingestão de vodca. Essas fontes, citando nota oficial da Polícia, indicam que o “campeão”, levado em coma para o hospital, teria consumido 30 copinhos (desse de plástico descartável, usados para se tomar cafezinho) e a vítima fatal, 25 copinhos.
Ocorre que o álcool é uma substância altamente tóxica para diversos órgãos do corpo humano (e de animais, igualmente), em particular para o cérebro, onde, acima de determinadas doses, provoca uma intoxicação caracterizada por sonolência (indo até o coma) bloqueio do centro respiratório, com parada respiratória e morte. Mas, qual é essa dose?
A dose média letal de álcool no sangue é de 0,40%, que é seis vezes o nível de uma embriaguez comum (o popular pileque), porém, a partir de doses bem mais baixas já existem danos cerebrais irreversíveis, e todo pileque já provoca a destruição de milhares de neurônios, que nunca mais serão regenerados. Aliás, um dos quadros clínicos da fase terminal do alcoolismo é justamente uma forma de demência, devida à destruição de milhares e milhões de neurônios causadas por repetidos pileques.
Na prática, para uma pessoa de cerca de 80 kg, atinge-se o nível letal com aproximadamente 1 litro de uma bebida destilada (pinga ou cachaça, vodca, conhaque etc), ingerido em breve espaço de tempo. Em termos de doses (usando-se os dosadores usados em bares, com capacidade de 30 ml) a partir de 30 doses já nos aproximamos da dose letal; entretanto, os copinhos de café têm capacidade para 50 ml, e vinte deles cheios de uma bebida destilada já atingem a dose letal. No caso infeliz de Bauru, a vítima fatal havia ingerido 25 copinhos de vodca, o que significa 1.250 ml dessa bebida (um litro e um quarto), acima da dose letal conhecida.
Todavia, os sobreviventes da roleta russa dos open bars não se safam tão indenes quanto os da roleta russa original. É importante destacar, sobretudo para a atenção das mulheres, que, entre os riscos da intoxicação alcoólica feminina, destaca-se hoje, e cada vez mais, o de estupro.
Os estudos de Vitimologia nos ensinam que em cerca de 40% dos casos de estupro a vítima estava embriagada. A facilitação do estupro se daria por três fatores principais: (a) no início da intoxicação, a mulher sente-se mais atraente (o que nem sempre é verdade) e mais desinibida e excitada (uma clara indicação de que o álcool já chegou ao cérebro), (b) com o aumento do nível de intoxicação, a mulher deixa de perceber o risco da situação em que se encontra e (c) na etapa seguinte, ela perde a capacidade de resistência física que talvez lhe permitisse enfrentar a agressão de forma mais efetiva.
Por outro lado, sabe-se que predadores sexuais tratam de intoxicar suas vítimas em potencial, antes do estupro. Embora muito se fale de drogas do tipo “boa-noite, Cinderella”, na prática, a droga mais usada para esse fim é mesmo o álcool. Sabendo-se ainda que na maioria dos casos o estuprador é bem conhecido da vítima (parentes, namorados, ex-namorados, colegas – de classe, de república -, vizinhos, conhecidos etc), o beber com conhecidos dá uma falsa impressão de segurança, muitas vezes com consequências desastrosas. Um open bar é preâmbulo ideal para esses predadores.
A questão que fica é: como tudo isso pode acontecer num ambiente de estudantes de uma das melhores universidades do país? Ignorância, má-fé, cupidez financeira, tédio com a vida, falta de perspectivas melhores? A Direção da Unesp, uma instituição também de pesquisa, vai se debruçar para entender melhor essa questão e desenvolver programas preventivos eficientes. A Polícia e a Justiça vão investigar as responsabilidades cíveis e criminais do caso.
*professor titular (visitante) do Australian Institute for Suicide Research and Prevention (AISRAP), Griffith University, Brisbane, Austrália, e professor voluntário do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp.