Ler, para mim, sempre foi o prazer predileto. Por mais desencantado possa estar, diante de uma realidade que assusta e aflige, o refúgio da leitura é lenitivo para todas as dores. Penetra-se num universo de surpresas. É como se alguém estendesse a mão e nos convidasse a percorrer caminhos que nunca poderão ser fisicamente conhecidos. Pois podem ser veredas da memória, os labirintos da consciência imperscrutável. Como se poderia conhecer uma pessoa que já partiu desta aventura terrena e se encontra na eternidade há muito tempo? A única tentativa de penetrar essas mentes é propiciada pelo reencontro com as sensações por elas registrada neste veículo mágico: a palavra.
Não estou sozinho nessa aventura. Todos os ledores contumazes encontram prazer semelhante. Pode variar a intensidade, a predileção por determinados temas. Porém o prazer sensual, concreto, praticamente físico, é experiência comum entre certa espécie de pessoas.
Encontro em Carlos Magalhães de Azeredo, cuja biografia li na coleção “Essenciais” da IMESP, uma dessas almas que se deslumbraram com a leitura. Narrando o seu mergulho no universo escrito, ele transmite sentimento que muitos compreenderão porque já provaram dele: “Historiadores, filósofos, poetas, contistas, romancistas, críticos, memorialistas, botânicos, zoólogos, narradores de viagens e explorações… que classe de escritores ficaram ausentes daquela magnífica assembleia? Nem sequer teólogos faltavam, e moralistas ainda menos. Estendido na convidativa poltrona costumada, tendo ao pé sobre uma pequena mesa, carinhosamente acomodados, os volumes e as revistas que escolhera pouco antes, eu me quedava a ler por horas esquecidas, numa abstração surpreendente; e me capacitava deste fenômeno singular: que até sob o jugo de uma tristeza imensa, em conjunturas pessoalmente e universalmente as mais dolorosas, as mais cruciantes, pode-se gozar, por um dom miraculoso do espírito, uma sorte de euforia física e psíquica. Mas isto só, de fato, acontecia, porque a comunicação intensa com tais exemplares superiores de humanidade me trasladava radicalmente, por duas ou três horas a fio, para fora das contingências do mundo real, e me introduzia, libertado e quase incônscio delas, numa região ideal, semelhante aos Campos Elísios sonhados pelos antigos, simultaneamente “utopia” e “ucronia”, isto é, para além do tempo e do espaço”.
Como transmitir às crianças de hoje esse encantamento que só a leitura consegue oferecer? A transformação desta República numa Pátria de leitores é o primeiro passo para a retomada ética do convívio. Uma Nação cujos filhos não conseguem frear os desmandos é um conglomerado amorfo de pessoas empenhadas na arte da sobrevivência e desvinculadas do sentido de pertencimento.
Todas as façanhas perpetradas por detentores de qualquer espécie de poder – econômico, político, o predomínio da força – acontecem no terreno vazio de participação. A missão indeclinável daqueles que amam o Brasil é despertar o brasileiro para a assunção de responsabilidades. Ressuscitar o princípio da subsidiariedade. Convencer-se de que o Estado, em formulação ideal e cada vez mais utópica, é instrumento de consecução de fins individuais. Não é finalidade em si. Deve servir ao cidadão. A cidadania é a titular da soberania, se é que algo sobrou desse relativizado conceito.
O povo-patrão é que deve assumir as rédeas, não os que empolgam o poder para se locupletar ou para satisfazer seus mesquinhos interesses. Um passo inadiável é fazer a criança ler mais. Quem lê aprende a pensar. Quem pensa não será facilmente conduzido. Saberá conduzir-se com autonomia, protagonismo e consciência de ser o reitor de sua própria experiência vital.
*presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.