A Câmara dos Deputados aprovou na Comissão de Constituição e Justiça o PL5069/2013, um projeto de lei que confirma a tese sustentada, há meio século, por estudiosas feministas: O direito é masculino. Esse projeto, assim como o “Estatuto do nascituro” e outras iniciativas, indicam a decisão dos representantes do povo de perseguir e punir as mulheres, de restringir seus direitos espaços vitais e também, criminalizar agentes de saúde que possam ajudá-las.

O aborto no Brasil é fundamentalmente uma questão de saúde pública. A ilegalidade gerou mercados paralelos que causam graves lesões e até mortes de centenas de mulheres especialmente das classes mais pobres que sofrem toda sorte de estigmas e dificuldades. O Estado silencia sobre essa questão de saúde pública e agora procura agravá-la com o enrijecimento da legislação penal.
A Constituição brasileira e dezenas de Convenções internacionais garantem os direitos das mulheres à liberdade, à saúde e à autodeterminação de sua vida pessoal e ao planejamento familiar. Dessas normas decorrem deveres de proteção do Estado brasileiro que são sempre menos respeitados por uma maioria parlamentar obcecada com a moralidade misógina de algumas igrejas.
O direito das mulheres a decidir sobre a gestação e a receber ajuda médica qualificada é garantido em praticamente todos os países com alto índice de desenvolvimento humano. Dito de outra maneira, o progresso social e econômico e a liberdade religiosa são, hoje, sinônimos de garantia da liberdade das mulheres a determinar sua vida pessoal e familiar.
A nossa Constituição garante a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres (artigo 5º, I). Se essa norma fosse respeitada, a fúria punitiva do Estado no caso da interrupção da gravidez deveria se voltar não só contra as mulheres, mas também contra os homens.
Poderíamos pensar então, com base no princípio da igualdade, em uma lei que obrigue os pais a passar pelo menos 8 horas por dia, cuidando das crianças que geraram, independentemente de sua relação com a mãe. Outra lei poderia punir com 10 anos de prisão o pai que abandona criança, ao invés de ameaçar com pena de até 20 anos o médico que ajuda mulheres inclusive com riscos graves à sua saúde ou prescrevendo contraceptivos como a pílula do dia seguinte.
Mas os legisladores não cogitam isso, porque o direito é masculino, feito por homens para os homens. Às mulheres atribui-se uma condição “natural”, que as torna objetos, devendo seguir o que o legislador supõe ser uma ordem indiscutível. Ainda que os homens abandonem as gestantes e os filhos, ainda que engravidem mulheres com violência sexual, a ordem “natural” impõe que as mulheres levem a termo a gestação.
As mulheres devem seguir invisíveis, fazendo aborto na clandestinidade com suas humilhações e riscos e se responsabilizando sozinhas pelos filhos. Essa é a leitura mais realista e menos hipócrita do que pretende o atual legislador brasileiro. Ao tentar reprimir as demandas das mulheres, como de outros grupos socialmente discriminados, o Poder Legislativo quer mantê-los na invisibilidade social. Isso é o pior caso de corrupção (perversão e destruição) da nossa democracia.

*professora de Direito Público da Unesp.