Desde a eclosão da crise financeira internacional, no final de 2008, ao menos algum incômodo começou a circular com os resultados do capitalismo, tal como se apresenta nas últimas três décadas: estaria ele fadado ao achaque e às manipulações de uns poucos indivíduos (agentes econômicos “lobo-racionais”) dedicados a ganhar muito, trabalhando quase nada, fazendo uso apenas de sua astúcia e do posicionamento privilegiado para o abate? Estaria certa a nova economia institucional ao clamar insistentemente por arranjos institucionais destinados a coibir a tendência “natural” ao logro como forma de obtenção de riqueza?
A este incômodo (relacionado às “regras do jogo”) vem se acrescentando outro, face à longa duração da crise (focado sobre os “resultados do jogo”): está o mercado conduzindo a patamares de concentração de renda inaceitáveis e/ou perigosos? Somando-se às reflexões de Piketty (“O Capital no século XXI), aparecem agora os dados empíricos alardeados pela respeitada ONG britânica Oxfam: o volume de riqueza concentrado nas mãos dos pouquíssimos muito ricos, em comparação com os muito pobres e pobres, é alarmante, e só tem feito crescer nos anos recentes.
Ambos os incômodos têm a ver, diretamente, com dois fatos relacionados entre si: o de que tempo é dinheiro e o de que crédito é tempo de trabalho ainda por se realizar. A concentração da riqueza expressa o resultado de um processo de escravização sutil, no qual o tempo dos que trabalham vale quase nada, porque submetido a padrões de produtividade desumanos, ditados pela precisão e pela rapidez das máquinas; e o tempo dos que possuem patrimônio, e dos que especulam, vale tudo, porque nada questiona sua ociosidade, legitimada pelo possuir. O dinheiro, o cimento dessa estrutura, junto com a falta dele, que empurra os despossuídos para o crédito.
A busca de inserção nas ondas de consumo, permanentemente ampliadas e enfeitadas por apelos incontroláveis, induzem os membros da classe média, e os candidatos ao ingresso nessa faixa de renda, ao comportamento que eleva a espiral do crédito e, portanto, ao comprometimento de seu futuro. Os juros explodem. Os dentes brancos e brilhantes nem se importam: ficam bem na foto que vai para o Facebook.
Quem pode, se agarra às moedas; quem não pode, chafurda a vida inteira na lama pegajosa das instituições financeiras, tentando agarrar-se à liquidez que lhe escapa das mãos, como sabonete molhado. Indivíduos, nisso, apenas imitam governos.
Quem consegue ver a engrenagem e dela se beneficia, sendo sádico, deve estar rindo à toa; ao contrário, quem se prejudica e entende o porquê, está num desespero descomunal, pois não tem interlocutores com quem discutir para, ao menos, denunciar: a política se situa à direita, lugar no mundo onde não só tempo é dinheiro, mas na busca por ele, cada um que se lasque – quem pode mais, chora menos.
*professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp.