O império da Ordem, da Justiça e da Cidadania é uma conquista do Estado Democrático de Direito, constituindo, por excelência, o apanágio das democracias.
Ao longo da história, as Nações têm procurado aprimorar o conjunto dos direitos individuais e coletivos de seus cidadãos, por meio da inserção de princípios, diretrizes e valores em suas Constituições.
Após um ciclo autoritário que deixou profundas cicatrizes no corpo social, o Brasil reencontrou a via democrática e conseguiu plasmar sua Carta Magna, considerada uma das mais avançadas do mundo no capítulo dos Direitos.
Graças à Constituição Cidadã de 1988, a Nação Brasileira passou a integrar a moldura das modernas democracias contemporâneas, sendo reconhecida pela grandeza de seu ideário, fundamentado em sólidos e imutáveis dispositivos, dentre os quais as chamadas cláusulas pétreas, insculpidas no artigo 60, parágrafo 4º, da Lei Maior: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”.
Sob a crença da imutabilidade de normas que regulam “os direitos e garantias individuais”, a Nação Brasileira assistiu, perplexa, a surpreendente decisão do Supremo Tribunal Federal de relativizar a cláusula pétrea da “presunção de inocência”, inserida no inciso LVII do artigo 5º da Constituição de 1988, assim descrita: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Responder a uma ação penal não significa ser culpado. Inocentes podem ser réus. Como lembra o ministro Celso de Mello, 25% dos recursos penais que chegam ao Supremo são acolhidos.
Ao proferir a decisão que permite o encarceramento do condenado em 2ª instância, a Suprema Corte não apenas muda a regra que assegura a liberdade do cidadão até o trânsito em julgado da sentença condenatória, mas também, ao desconsiderar um direito fundamental, parece abrir a possibilidade para que qualquer outra cláusula pétrea da Constituição Federal possa vir a ser afastada.
Se a decisão da Corte procurou ouvir a voz das ruas e dar resposta à lentidão do Judiciário, parece um despropósito mudar a letra constitucional sob um viés de cunho populista ou transferir para o cidadão o fardo da morosidade, que compete ao próprio Judiciário equacionar.
Lembre-se, a propósito, que o STF já tentou implantar a decisão provisória de sentenças penais, por meio de proposta de emenda constitucional, que ainda tramita pelo Poder Legislativo.
Não pode e não deve o STF agir como uma Assembleia Constituinte, mudar a Constituição que deveria defender e, mais, invadir o terreno legislativo, expandindo o que se convencionou chamar de politização da Justiça.
A Lei já define as circunstâncias que justificam a prisão preventiva, que ocorre antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória. Por sua gravidade, são situações especialíssimas onde o legislador definiu quando o interesse social deve se sobrepor para justificar a supressão da liberdade individual. A decisão do STF parece desconsiderar essa delimitação legal e permitir que todos os Réus condenados em segunda instância, mesmo os primários e de bons antecedentes, que tenham contra eles imputada a prática de delito de baixo potencial ofensivo, ou mesmo de natureza culposa, sofram a segregação social da prisão. Ou isso, ou concede a cada julgador o poder de decidir se encaminha ou não o cidadão ao cárcere, de acordo com critérios por ele mesmo definidos.
É necessário, sim, discutir-se o sistema de Justiça de nosso País. Debater seriamente sobre as razões da demora processual, verificar os fatores intrínsecos e extrínsecos que fazem com que os processos em geral, inclusive os de natureza penal, tenham tempo excessivo de tramitação, mas sempre com o intuito de preservar e fortalecer os direitos fundamentais assegurados na Constituição de 1988, e no local apropriado para essa discussão, o Congresso Nacional.
A Advocacia, invocando seu papel constitucional de indispensável à administração da Justiça, e em nome do compromisso de defender a Constituição e a ordem jurídica, por meio de suas entidades representativas, vem repudiar o atentado cometido a cláusula pétrea da presunção de inocência e manifestar a necessidade do Supremo Tribunal Federal retomar seu papel de guardião dos direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito.
*Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secional de São Paulo com o apoio da Subsecção da OAB de Dracena.