Quando tudo começou, nós já havíamos deixado a embaixada dos bêbados no fundo do boteco do português situado bem em frente à bicicletaria do japonesinho, famosa na cidade onde estamos ilhados. Bem ali, estacionado embaixo de meu nariz, estava os confins procurado por todos e encontrado por ninguém, espalhado infinitamente em todas as perspectivas possíveis – e o que é a perspectiva senão o ponto de vista mal definido, ou pelo menos, muito reduzido!? E eu, quem diria!!, procurando como quem deseja encontrar e nem sabe o que. Além de tudo, havia dormido com a cabeça cheia de cana, a consciência entorpecida e os sonhos afogados aguardando a páscoa dos novos tempos. Se sóbrio navego em pesadelos, melhor viajar na embriaguez dos sonhos.
Salto da cama e avanço na direção da carreta parada em frente a minha janela com as portas abertas e o motorista desolado girando o volante, mantendo o motor desligado, dando a entender o desejo de encontrar a direção e o medo de se meter no rumo errado. Com a mão assustada dormindo sobre a buzina, ele permanece afugentando os atrevidos e curiosos. Estático, espera a queda do destino em sua cabeça. Por sorte não há destino, mas somente tendências, se não ele seria massacrado pela própria história. E lá vou eu…
Peço uma cachaça, afogo as mágoas, ciente de sua sobrevivência em meus sofrimentos. Elas aterrizarão nas margens de minhas dores após a ressaca. Abasteço-me com entorpecente para a consciência sem sair do quarto de pensão instalado ao léu há milhões de anos e ocupados por miríades de peregrinos antes e depois de mim. Partiram sem saudades saudados por parturientes e seus paradeiros são incógnitas e os nascituros se espalharão entre alguns bilhões de semelhantes sonhando fazer memória “agora e na hora de nossa morte, amém”.
Continuei sentado na janela da rua que dava para o meu quarto como se a perspectiva do mundo estivesse mais de fora para dentro do que de dentro para fora. Assim eu podia ver meu quarto com os olhos do motorista titubeante em girar a chave na ignição temendo cair no abismo cavado a menos de duas voltas de seus pneus eternamente novos e inúteis. Os pneus costumam murchar mais parados do que rodando, pois foram feitos para o movimento. Estacionados perdem a razão de viver e se esvaziam. Talvez o motorista sofresse o mesmo mal do pneu.
Por acaso, percebo que nem a rua nem meu quarto têm portas e janelas. E esta pequena fresta onde me sento se fez único ponto de contado entre os dois mundos. Os clássicos latinos talvez falassem do encontro da urbi e da orbi. A pequena vizinhança na qual estamos envolvidos e o grande universo ao qual estamos destinados. O quarto, minha falsa urbi, com nada se relaciona. Do mundo, minha assustadora orbi, prefiro me esconder. O cosmo caótico se estampa nos olhos protegidos pelos óculos do negativismo. A rua não precisa de porta porque o mundo não tem parede, mas a desordem espalha muralhas e constrói divisões.
Olho pela janela e ouço homens divididos entre o sim e o não esbravejando despautérios. Mãos e bocas formam ondas espalhando-se estrondosamente sobre meu quarto. O gigantesco corpo de homens assume o alter ego da sociedade capaz de bater palmas quando ali reconhece seus pesadelos. O motorista finalmente roda a chave, os motores vibram, e ele grita em despedida. Homens e ímãs seguem magnetismos diferentes. Diferentemente dos ímãs, os homens parecidos se atraem! Saiu com pneus murchos e as rodas com a cambagem, o alinhamento e o balanceamento mal calibrados; tanto os dianteiros quanto os traseiros. Os bêbados de sonhos batem à janela: – Corramos! Corramos enquanto há tempo! Vamos consertar as rodas e encher os pneus para não ficarem tão feios os rastros da história.
*Professor da Faculdade REGES de Dracena; Mestre em Direito (Teoria do Direito e do Estado) pela UNIVEM (Marília); doutorando em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela ITE-BAURU.