Os atuais fatos trouxeram-me lembranças do primeiro ano de escola. Aqui vai coisa que não contei nem para minha mãe. Ela sabia que tomavam meu pão, mas não imaginava que cuspissem nele. Coisa de criança! Naquela pequena escola rural, a lei era a do mais forte. Como me situava entre os mais fracos, para não apanhar, costumava ficar calado. Calava-me até mesmo quando o colega repetente da série seguinte tomava meu lanche e, não gostando, cuspia nele. A opção era ficar com fome ou comer o pão umedecido com a saliva do mais forte.

No entanto, havia na turma alguém fracote e destemido suficientemente disposto a apanhar enfrentando os mais fortes. Certa feita o valentão tomou o lanche deste dito cujo e em resposta levou tremenda cusparada na cara. O cuspidor quedou-se cuspido. Partiu para a violência e ambos acabaram ajoelhados no grão de milho. A punição foi pela briga; a motivação permaneceu ignorada pela professora.
Então, para aqueles infantes a saliva servia em duas perspectivas retóricas: 1) o desprezo do forte pelo fraco como pura manifestação da ignorância com o argumento alheio por falta de conteúdo da própria fala; e 2) a resistência do fraco diante do forte quando nada havia para ser dito em defesa mesmo estando absolutamente certo. Neste caso, ela se manifestava como tribunal máximo de apelação, especialmente quando xingavam a mãe, injuriavam a irmã ou questionavam a sexualidade alheia.
O tema não ressuscitou por divergências infantis, mas pela infantilidade das divergências. A atual referência retórica são as cusparadas ocorridas no plenário do parlamento nacional. Como o próprio nome diz: parlamento! Quer dizer, onde a fala é o instrumento de mediação das divergências. No parlamento supõe-se existir a diversidade ideológica, cultural, social, política e educacional, presentes na sociedade e aprimorada pela seletividade do sufrágio. De certo modo aquela casa configura o alter ego de toda a sociedade. Lugar no qual não se espera a unanimidade, até porque deveria ser o máximo da inteligência nacional. E nosso Nelson Rodrigues adverte sobre a burrice da unanimidade. A diversidade provoca saídas inteligentes.
O problema é quando os argumentos são trocados por insultos pessoais, injúrias de gênero, raça, religião; pressão psicológica e ameaças; compra e venda da moralidade; e, até, xingar a família alheia. Como em minha pequena escola tudo começa quando quem está com a força sente-se no direito de cuspir no pão, na ideia, no projeto e nas propostas do outro. Às vezes cospe-se saliva, outras transbordam verborragias. Em geral, o objetivo é humilhar o outro e não produzir argumentos integradores de divergências.
Quando os homens responsáveis em resolver os problemas mais graves do país precisam apelar para a retórica da saliva, o que esperar dos debates do dia a dia? Acuados e acuadores vão resolver seus problemas e esclarecer as diferenças na cusparada. Resta saber se é a saliva do impedido de expressar suas ideias pela arrogância do adversário ou a de quem se sente no direito de cuspir no pão do outro. Apesar de parecer cômico, a consequência disto é trágica.
Na idade média, alguns defendiam a arte de calar ou do silêncio como instrumento da retórica. No alvorecer dos tempos modernos Dinouart (1771) publicou um pequeno tratado sobre o tema no qual identificou dez manifestações necessárias do silêncio na arte do convencimento. Para ele, em algumas situações, a melhor maneira para convencer os outros do valor de suas razões é o silêncio. O silêncio comunicativo caracterizado como prudente, artificioso, complacente, zombador, de aprovação, de reprovação e político.
Quando a manifestação da diferença torna-se alvo de cusparadas retóricas indicando o esgotamento ou a inexistência de argumentos, caminhamos para a unanimidade burra. Ao ver o argumento divergente calado por lances de saliva ou de insultos cabe o obsequioso silêncio de quem acredita na liberdade de expressão. Que a retórica do cuspe não silencie a diversidade, nem desencoraje o diálogo!

*Professor da Faculdade Reges de Dracena; mestre em Direito (Teoria do Direito e do Estado) pela Univem (Marília); doutorando em Direito (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela ITE-Bauru.