Em 18 de outubro de 1997, publiquei no suplemento “Cultura”, do “Estado de São Paulo’, um artigo sobre o Nobel que tinha sido concedido poucos dias antes a Dario Fo, que infelizmente acaba de nos deixar. Naquela ocasião, mencionei uma declaração dada pelo crítico italiano Carlo Bo, relacionando os comentários feitos pelo papa da época sobre as canções de Bob Dylan ao prêmio outorgado a Dario Fo, ressaltando que tanto Fo como Dylan acabaram, enfim, sendo “assimilados” ou “ digeridos” pelo “sistema” estabelecido, isto é, pelas hierarquias do poder político-religioso que sempre temeram as denúncias, as provocações e a fina ironia de ambos, do “giullare” (“menestrel” ou “saltimbanco”) italiano e do poeta do rock and roll ou do country rock. Por ironia do destino, o Nobel da literatura foi anunciado há poucas horas, tendo sido justamente conferido a Bob Dylan, e Dario Fo, outro Nobel, morreu aos 90 anos, depois de uma longa, polêmica e brilhante carreira no teatro italiano, como autor de peças memoráveis e também como ator, que impressionava pelo talento arrebatador e pela capacidade incrível de improvisação, nos palcos e também nas apresentações em público e em alguns programas da televisão italiana.
Dario Fo foi o Pasolini do teatro italiano. Conseguiu a proeza de unir o teatro engajado politicamente dos anos 60 à tradição da “Commedia dell’Arte”, teatro de matriz popular que se estendeu pela Itália e em parte da Europa do século XVI ao XVIII, fundamentado na capacidade de improvisação dos atores que, na ausência de um texto definitivo, geralmente contando apenas com um roteiro ou copião improvisado, deviam demonstrar habilidade e talento nas apresentações em público, em cidades pequenas do interior italiano e, com o tempo, na França e em outros países europeus,. As peças de Dario Fo retomam inclusive o plurilinguismo da “Commedia dell’Arte”, em que os dialetos italianos, sobretudo setentrionais, fundem-se com a mais pura invenção, sempre associada à mímica e à gestualidade frequentemente histriônica, mas nunca vulgar ou banal. Em peças como “Mistero Buffo”, por exemplo, de 1969, os ingredientes sabiamente utilizados por Dario Fo enxertam na provocação aberta contra a cúpula do catolicismo o intenso trabalho linguístico do “grammelot” (uma espécie de sequências de palavras e sons esparsos aparentemente desarticulados mas que se tornam perfeitamente compreensíveis graças à gestualidade).
Uma das tragicomédias mais polêmicas e mais intensamente irônicas de Dario Fo foi, certamente, “Morte accidentale di un anarchico” (“Morte acidental de um anarquista”), de 1970, grande sucesso de público no mundo todo, inclusive no Brasil. A peça, de 1969, foi escrita logo após um dos tantos atentados terroristas que sacudiram a Itália no fim dos anos 60 e durante os anos 70: o famoso atentado de Piazza Fontana, em Milão, no qual uma bomba colocada num banco por um grupo extremista, de direita ou de esquerda, levou mais de 17 pessoas à morte. Pressionada pela opinião pública e pelos políticos, a polícia acabou culpando injustamente Pinelli, um operário anarquista, que acabou morrendo depois de um interrogatório, supostamente jogando-se de uma janela da delegacia. Dario Fo, assim como boa parte da opinião pública mais esclarecida da época, não aceitou passivamente a versão das autoridades e, no calor do momento, escreveu esta brilhante peça em que o principal personagem é simplesmente denominado “o louco”, sendo o único que conhece a verdade e que, travestindo-se continuamente, ora se faz passar por juiz-inspetor, ora por professor, ora por enviado do papa e, enfim, simplesmente, por “louco”, levando literalmente ao total desconcerto os investigadores policiais.
“Morte acidental de um anarquista” impressiona principalmente pela finíssima ironia, já presente no título, e por constituir um dos raros casos em que uma obra de arte abertamente engajada e polêmica se refere, de maneira sarcasticamente explícita, a um evento histórico que acabou de acontecer, sem transformar-se em mero panfleto político e sem perder em originalidade e poder de denúncia. Entre os tantos temas “quentes” (para a época e, de certo modo, ainda hoje) estão a Guerra do Vietnam e, sobretudo, a construção das verdades que interessam ao poder político mediante o escândalo público midiático, a serviço dos interesses das classes dominantes, principalmente das elites mais retrógradas. Partindo de um caso local, o autor consegue brilhantemente dissecar a forma pela qual a opinião pública é mundialmente direcionada e moldada de acordo com o interesse de certos grupos que não hesitam também em manipular, de acordo com as conveniências do momento, a comoção e a indignação das pessoas comuns. Na comédia, o único a ter consciência dos fatos é justamente o que se denomina “louco”.
Por causa da predisposição à polêmica e às flechadas em todas as direções, à esquerda e à direita, Dario Fo e Franca Rame, a sua companheira de sempre, na vida e no teatro, falecida em 2013, foram perseguidos e sofreram todo tipo de boicote na Itália. As polêmicas sempre acompanharam a vida do grande autor-ator, inclusive quando foi premiado com o Nobel, em 1997. A sua morte, portanto, dará origem provavelmente a novas controvérsias a respeito das suas opiniões, abertamente de esquerda e contra todas as formas de opressão midiáticas e políticas. No entanto, mesmo os que nunca concordaram com a agressividade “elegante” das suas ideias, agora, mais do que nunca, deverão dar o braço a torcer e reconhecer o alcance universal das suas comédias ou tragicomédias e o seu inegável e imenso talento como ator.
Sérgio Mauro é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.