Nos dias correntes, muitos professores, jornalistas, pensadores em geral, se entrincheiram em posições políticas controversas propostas por grupos apoiadores de slogans como o “Lula salvador dos pobres e oprimidos”, “Dilma coração valente” e outras subjetividades irrefletidas, aparentemente redentoras do centenário atraso brasileiro. Professores universitários têm-se permitido acreditar e difundir narrativas do recente impeachment como golpe jurídico-parlamentar contra a democracia, com a conivência da “mídia monopolista”, arregimentadora de uma oposição “antipopular e antinacional”.
Muitas vezes, estes “pensadores” têm escondido suas frágeis posições atrás de um combate sem trégua contra o frágil governo que se instalou no país, frágil justamente por causa dos desmandos, negociatas, butins, dilapidações do tesouro público, orquestradas por falsos defensores do povo que de maneira equivocada e abusiva se autodenominam socialistas. Muitos têm também divulgado interpretações no sentido de que uma onda direitista esteja tomando conta do mundo e do Brasil, e que o governo “entreguista-capitalista” do atual presidente significa uma avassaladora retomada do poder pela “burguesia” perversa, ávida por impor sacrifícios ao inocente e desprotegido proletariado, até então defendido e preservado, ao longo dos últimos 13 anos, por dedicadas e acolhedoras administrações petistas.
Pois bem, agora que ficou esclarecida até mesmo por organismos internacionais a maior trama corrupta de todos os tempos, orquestrada ao longo dos governos petistas pela trinca Odebrecht-BNDES-Lula, que manchou a imagem do Brasil no mundo, fica bem complicado para esta “intelligentsia comprometida” manter os elementos daquele fraudulento discurso. O gigantesco esquema de corrupção vai desmoronando e com ele a enganadora narrativa.
De toda a forma, resta difícil entender como tantos doutores, cientistas sociais, historiadores – e suas instituições de representação – engoliram e justificaram tanta interpretação política de baixa qualidade crítica. Resta difícil, mas não é impossível: aproveitando indicações clássicas é possível, aqui, levantar uma hipótese de entendimento da submissão de boa parte da intelectualidade brasileira a estas narrativas tão eivadas de interpretações simplificadoras e aberrações analíticas.
A palavra chave para esta proposta de entendimento é engajamento. Ou melhor, uma forma específica e patológica de engajamento. O intelectual, sobretudo o acadêmico das ciências humanas, forjado na política democrática do período pós-ditadura, ressabiado pelos antigos desmandos e prepotências castristas, promoveu uma série de mutações em seu comportamento diante do poder: do antigo respeito ao isolamento de sua condição, da equidistância em relação a uma receita de poder, passou a aderir de maneira visceral a uma causa, “a correta”. Da condição de intelectual que podia ver mais do que o vulgo não estudioso, defendendo certa distância e mesmo adotando um condenável desprezo pela massa inculta, mas que mesmo assim o preservava do cego mergulho ideológico, o “verdadeiramente democrático intérprete” dos dias de hoje se entrega de corpo e alma à massa, aos comportamentos dela, aos seus limitados anseios, às suas idiossincrasias, tomando-as como uma benção contra os males do elitismo. Abandonando a autonomia ideológica, equiparando-se ao fanatismo militante próprio da submissão a uma agremiação política específica, o intelectual engajado não mais interpreta o combate, agora participa dele, integra-se a ele, pega em armas conceituais e se projeta impávido como um soldado partidário da causa da “cultura correta”, dos “valores puros” do imaginário e “intocado proletariado redentor”.
“São clérigos não mais no sentido de portadores de valores espirituais, mas no sentido originário de ministros e fiéis de uma igreja constituída”, explicou Norberto Bobbio sobre alguns espécimes do gênero que atuavam na Itália de seu tempo. Mas, aqui em nossas plagas, os intelectuais engajados destes nossos dias brasileiros tão difíceis não são mais pensadores, não fazem a crítica. Propagam uma fé e, claro, buscam excomungar de suas instituições os oponentes, vistos então como inimigos. Raciocinando desta maneira dá pra entender, não é mesmo? O que não dá é pra concordar com estes intelectuais tão pouco pensadores.
Alexandre Hecker, historiador, lecionou no Programa de Pós graduação da Unesp de Assis, na PUC-SP e na Universidade Mackenzie. É Professor líder do Grupo de Pesquisas “E/Imigrações: histórias, culturas, trajetórias”, do CNPq. Contato: fahecker@uol.com.br