Os governantes (políticos ou não) passam tantos anos blindados da incerteza da vida privada, que, com o tempo, desenvolvem uma casca dura que os impede de perceber como funciona a vida aqui fora, no incerto mundo real.
O nome que atribuem a este distanciamento é autoridade. Ao invés de se tornarem autoridades nos temas das suas pastas, passam a agir com a autoridade de mandar fazer mesmo aquilo que a realidade demonstra ser impossível. É com esta autoridade autoritária, que deixam a condição humana e alcançam as esferas reservadas às divindades. Assim, o ato de autoridade se converte em autoritarismo, que se expressa por políticas que não alcançarão os resultados pretendidos pelos próprios governantes.
Ao anunciar as regras do novo Refis, o governo se esqueceu que o programa foi criado para o mundo real, não para o Brasil ideal. No mundo ideal, nenhuma das empresas deveria ter deixado de pagar impostos. Já no mundo real, a carga tributária da fabriqueta de parafusos é a mesma que é aplicada para a VALE. Como no mundo real não existem bancos dedicados à vida produtiva, na crise, as empresas param de pagar os tributos como medida de autofinanciamento.
Para a nossa sorte, o nosso azar se manifesta por Medidas Provisórias inconstitucionais, como é o caso da MP 766 de 4 de janeiro de 2014.
Segundo o texto da MP, algumas pessoas físicas e jurídicas titulares dos mesmos tipos de débitos, receberão tratamento diferenciado. A uns deram direitos; a outros… obrigações.
O Programa de Regularização Tributária é inconstitucional porque usa dois pesos e duas medidas, com regras e tratamentos diferenciados para situações semelhantes. De um lado estão aqueles que têm débitos, mas ainda não estão inscritos em Dívida Ativa, ou seja, são cobrados pela Receita Federal. E, de outro, aqueles cujos débitos já foram inscritos e, portanto, passam a ser cobrados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.
Obvio que para a empresa devedora não existe diferença: tudo é dívida. Pouco importa se está ou não inscrita, dívida é dívida. Mas, quando o Estado resolve usar duas políticas diferentes para abatimento do mesmo débito, ele o faz de forma inconstitucional, violando o art. 5o da Constituição Federal que garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
No mundo real, todos são iguais: devedores. Mas em Brasília alguns devedores podem mais do que outros. Aqueles cujas débitos ainda estão no âmbito da Receita Federal, poderão compensar com créditos tributários (tributos inconstitucionais pagos indevidamente) ou prejuízos fiscais (fenômeno comum no balanço de empresas, após a quebra da economia provocada pelo próprio Governo). Em síntese: na Receita pagarão o débito com créditos ou com prejuízo acumulado.
Para aqueles cujos débitos já se encontram no âmbito da Procuradoria, este mesmo direito não existe: débitos iguais, tratados na forma diferente.
Mas a assimetria não para por ai, a inconstitucionalidade continua. Para os débitos ainda administrados pela Receita Federal não é preciso garantias (seja qual for o valor). Mas, para os débitos da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, acima de 15 milhões, a empresa deve garantir a dívida, com bens, carta de fiança, ou seguro garantia.
Quem vive no mundo real, sabe que empresas que devem mais de 15 milhões já comprometeram seus bens garantindo os queridinhos governamentais, os bancos. Uma vez que não possuem garantia terão que comprar um ingresso no clube dos autorizados por Brasília: este ingresso se chama carta de fiança bancaria ou seguro garantia.
Logo, a exigência inexigível favorece apenas um dos grandes contribuintes das campanhas políticas, as instituições financeiras (as únicas autorizadas pelo Banco Central a venderem as cartas de fianças) ou seguradoras (seguro garantia).
Vê-se que o que é desgraça para uns é graça para outros, dado que o governo que causou o endividamento no mundo produtivo acaba de alavancar um novo mercado exclusivo para os bancos e seguradoras (elegendo quem os elegeu, conforme a lista das doações eleitorais).
Porque débitos iguais ou superiores a 15 milhões, precisam de garantia na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e na Receita não? Simples, porque o Governo desconsidera a Constituição Federal que assenta-se no princípio da isonomia: situações iguais devem ser tratadas igualmente.
Sendo assim, o pagamento das dívidas mais velhas torna-se mais impossível do que o das dívidas mais novas. Claramente existem dois programas para tratar um só problema.
E, dessa maneira, o Brasil vai falindo. Pedidos de Recuperações Judiciais explodem por toda a parte. Enquanto o Brasil oferta o “vende-se” e o “aluga-se” para quem não pode comprar nem alugar, em Brasília os que causaram a crise transferem a conta para as empresas e, quando apresentam um plano para salvar da falência as finanças do Governo, que gasta mais do que arrecada, o plano é inconstitucional e não leva em consideração a realidade brasileira.
Para quem já está curioso com o final dessa temporada, adianto que o programa irá fracassar. Temos mais do mesmo, uma vez que a MP mantém os mesmos vícios das versões anteriores, um vício chamado Brasília.
*Advogado e escritor