Passados exatos dois anos da tragédia de Brumadinho (MG), o volume de recursos anunciado pela Vale para pagamento a acionistas é de R$ 19,6 bilhões. Nesse mesmo período, segundo dados da própria mineradora, foram pagos R$ 3,7 bilhões em indenizações e auxílios emergenciais aos atingidos na tragédia. A comparação das cifras tem sido usada pelos atingidos para cobrar um maior comprometimento com a reparação dos danos causados na tragédia.
“São valores altíssimos repassados aos acionistas. É um desrespeito com aquelas pessoas que tiveram suas vidas ceifadas. E não falo só das vítimas que foram privadas do direito de viver. As famílias que perderam seus entes queridos estão sem forças pra nada. É um pesadelo constante”, diz a engenheira civil Josiane Melo, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão (Avabrum). Ela perdeu sua irmã Eliane Melo, que estava grávida de cinco meses.
A mineradora diz estar empenhada na reparação dos danos. “Comprometida em indenizar de forma justa e célere todos os impactados, a empresa já pagou mais de R$ 2 bilhões em indenizações. Ao todo, 8,7 mil pessoas já firmaram acordos de indenização com a Vale, sendo 1,6 mil por meio da justiça trabalhista e 7,1 mil pessoas em indenizações cíveis. No total, mais de 3,8 mil acordos foram assinados. Os recursos destinados ao auxílio emergencial ultrapassam R$ 1,7 bilhão”, diz em nota.
Desde a tragédia, ocorrida após o rompimento de uma barragem na Mina Córrego do Feijão em 25 de janeiro de 2019, 259 corpos foram resgatados. Permanecem desaparecidas 11 pessoas e o Corpo de Bombeiros prossegue com as buscas. A avalanche de lama também destruiu comunidades, devastou vegetação e poluiu o Rio Paraopeba, que abastece parte da região metropolitana de Belo Horizonte.
Após o episódio, a primeira vez que a mineradora anunciou remuneração de acionistas foi no final de 2019. Foram reservados R$ 7,25 bilhões para distribuição a título de juros sobre capital (JCP). O repasse desse valor aos acionistas aconteceu no dia 7 de agosto de 2020, quando o Conselho de Administração da Vale restabeleceu a política de remuneração que estava suspensa desde a tragédia. Um novo anúncio da Vale envolvendo a remuneração de acionistas voltou a ocorrer em outubro do ano passado: foram reservados US$ 2,3 bilhões (cerca de R$ 12,35 bilhões) para pagamento de dividendos e juros sobre capital próprio (JCP).
A remuneração de executivos também tem cifras significativas. A Vale distribuiu R$ 19,1 milhões como prêmio por desempenho a diretores. Esse valor, aprovado em assembleia em abril de 2020, é referente a 2019, ano em que a tragédia ocorreu. Entre os beneficiados estavam pessoas que desempenhavam função de direção à época do rompimento da barragem.
A Vale afirmou na época que os valores foram divididos entre os executivos que não estavam sendo investigados e sustentou que os diretores cumpriram ao longo do ano suas metas de sustentabilidade e de reparação de danos do desastre. Sócios minoritários e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) votaram contra a decisão, mas foram votos vencidos diante dos acionistas que detém 60% das ações, entre eles o Bradesco e a Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil.
Apesar do impacto financeiro que se seguiu nos meses posteriores à tragédia, a Vale minimizou as perdas de 2019 com bom desempenho no segundo semestre. A mineradora fechou o ano com prejuízo de R$ 6,672 bilhões (US$ 1,683 bilhão). Em 2020, considerando os balanços já divulgados dos três primeiros trimestres, o lucro líquido acumulado é de R$ 21,9 bilhões. Restando o balanço do último trimestre a ser divulgado, a Vale se aproxima do desempenho de 2018, ano anterior à tragédia, quando lucrou R$ 25,6 bilhões.
Indenizações por mortes
Para indenizar parentes dos trabalhadores que morreram, um acordo foi firmado entre a Vale e o Ministério Público do Trabalho (MPT) em julho de 2019. Mais de 90% dos 259 corpos resgatados pertenciam a funcionários que atuavam no Mina Córrego do Feijão: 123 eram empregados próprios da Vale e 117 de empresas terceirizadas. “Não avaliamos que foi um acordo positivo. Não fomos consultados e não tivemos opções. Disseram que era isso ou ir pra Justiça”, disse Josiane Melo.
Conforme o acordo, pais, cônjuges ou companheiros e filhos dessas vítimas receberiam, individualmente, R$ 500 mil por dano moral. Já os irmãos receberiam R$ 150 mil cada um. Além disso, a título de dano material, a Vale deve pagar uma pensão mensal para os familiares que dependiam financeiramente da vítima. O acordo assegura que dependentes de cada morto não devem receber menos que R$ 800 mil, ainda que o cálculo fique abaixo desse valor.
Os valores são inferiores ao que previa um estudo interno da própria mineradora Vale que foi apreendido pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) no curso das investigações sobre a tragédia. Ele fixava a indenização em quase R$ 10 milhões por morto. “Claro que uma vida não tem preço. Mesmo R$ 10 milhões, a gente ainda iria achar que é pouco perante uma vida perdida. Mas temos vistos algumas boas indenizações para quem teve danos materiais. Houve lotes e chácaras devastados no rompimento da barragem que foram muito bem valorizados. Enquanto isso, quem perdeu um irmão ou um filho sequer foi ouvido para definir a indenização”, lamenta Josiane.
Decisões judiciais
Nem todas as famílias aceitaram os valores e algumas optaram por mover processos. A Vale já foi condenada em alguns deles, embora existam decisões que foram alvo de recursos tanto da mineradora como de parentes que pleiteiam majoração das indenizações. Na 3ª Vara do Trabalho de Governador Valadares, por exemplo, a Justiça determinou o pagamento de R$ 2 milhões em danos morais a um casal que perdeu sua filha na tragédia: ela era engenheira e estava na Mina Córrego do Feijão quando foi soterrada pela lama. Na segunda instância, o valor foi reduzido para R$ 1,3 milhão. O casal manifestou discordância em relação à quantia fixada e o caso subiu para o Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Já na 6ª Vara do Trabalho de Betim, a mineradora foi condenada ao pagamento de R$ 1,5 milhão aos familiares de outro trabalhador falecido. A Vale recorreu e, na segunda instância, as partes chegaram a um acordo pactuando a quantia de R$ 1 milhão, com o processo transitando em julgado. Na Justiça comum, também existem decisões favoráveis a quem processou a Vale. Em maio de 2020, a 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude de Brumadinho, condenou a Vale ao pagamento total de R$ 5 milhões a uma mulher que perdeu o filho de um ano, o esposo e a irmã, além de ter tido sua casa destruída e de ter sofrido fraturas e lesões que deixaram cicatrizes. Há um recurso da mineradora aguardando julgamento.
Em outra decisão, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) fixou em setembro de 2019 o montante de R$ 11,8 milhões para indenização por danos morais a quatro parentes – pais e irmãos – de Luiz Taliberti, a irmã Camila Taliberti e a esposa dele Fernanda Damian, grávida de cinco meses. Eles estavam hospedados na Pousada Nova Estância, que foi soterrada pela lama de rejeitos. Após a Vale apresentar um recurso, as partes firmaram um acordo em segunda instância cujos valores são sigilosos e o processo foi arquivado. Posteriormente, outros cinco parentes – avós, irmãos e primos – das mesmas vítimas também tiveram decisão favorável: a mineradora foi condenada a desembolsar mais R$ 8,1 milhões. A Vale recorreu dessa sentença.
Sobreviventes
Indenizações para os trabalhadores sobreviventes também foram discutidos na Justiça. Negociações entre a mineradora e seis sindicatos levaram a acordos que foram homologados em abril do ano passado pela 5ª Vara da Justiça do Trabalho de Betim. Deverão ser pagos até R$ 250 mil por danos morais e materiais a cada um dos funcionários, sejam eles da própria Vale ou de empresas terceirizadas, que atuavam na Mina Córrego do Feijão. O maior valor é para os que estavam trabalhando no momento do rompimento da barragem.
Josiane, que também é funcionária da mineradora, conta que muitos colegas tiveram dificuldade de lidar com o trauma vivido. “Muitos dos trabalhadores sobreviventes optaram por se desligar da Vale. E há uma dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho. Primeiro porque estamos no meio de uma pandemia. Segundo porque essas pessoas realizaram ou estão realizando tratamento psiquiátrico. Os currículos estão manchados porque trabalharam na Mina Córrego do Feijão e ninguém quer contratar pelo estigma. Os empregadores não querem um trabalhador com problema psiquiátrico”.
(Léo Rodrigues – Repórter da Agência Brasil)