A pandemia do novo coronavírus teve impactos sem precedentes no Brasil. Além da Covid-19, o País teve que lidar com outra realidade que foi ainda mais evidenciada nesse período: o aumento no consumo de alimentos não saudáveis, especialmente nas camadas mais vulneráveis. Para entender sobre os impactos da Covid-19 na vida de crianças, adolescentes e suas famílias, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) elaborou a pesquisa “Impactos primários e secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes”. Com duas rodadas de entrevista (uma em julho e outra em novembro de 2020), realizadas pelo Ibope Inteligência, as entidades conversaram com 1,5 mil famílias brasileiras para conhecer a situação do antes e o depois da pandemia.
Os itens abordados na pesquisa foram renda familiar, segurança alimentar, educação e saúde mental. Entre os entrevistados, 53% eram mulheres e a idade geral variou entre 18 e 55 anos ou mais – esse último grupo correspondeu a quase 30% do total.
Entre os entrevistados, 46% se declararam como brancos e o restante se dividiu entre pardos (40%) e negros (10%). A maior parte das entrevistas se concentrou na região Sudeste (44%), seguido das regiões Nordeste (26%), Sul (15%), Centro-Oeste (8%) e Norte (também com 8%). Em relação à condição socioeconômica, a maioria se declarou pertencente à classe C (46%), com ganho entre um e dois salários-mínimos (30%).
Entre os dados que mais chamaram atenção, estão os que envolvem famílias com crianças e adolescentes. Cerca de 44% dos participantes da pesquisa disseram morar com crianças e/ou adolescentes com idade entre 0 e 17 anos. Num comparativo entre julho e novembro, o consumo de alimentos industrializados aumentou nas casas dos brasileiros, período da pandemia. E foi observado que o aumento no consumo desses tipos de alimentos segue maior entre residentes com crianças e adolescentes.
“Não temos dúvidas de que os alimentos industrializados estão cada vez mais baratos e mais acessíveis. Nos últimos anos, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE), quando se fala sobre os gastos da população brasileira com alimentação, vemos que tem aumentado muito o gasto com os industrializados também porque eles têm diminuído o valor ao longo do tempo. E isso ocorre em detrimento do consumo de alimentos mais saudáveis”, alerta a oficial de Saúde do Unicef no Brasil, Stephanie Amaral.
De acordo com a pesquisa, em novembro, 54% dos participantes relataram mudanças nos hábitos alimentares em casa – em julho, esse número era de 49%. Entre os entrevistados em novembro, 21% declararam ter aumentado o consumo de alimentos preparados em restaurantes fast food, e 29% aumentaram o consumo de alimentos industrializados. Nas famílias com crianças e adolescentes, o consumo destes alimentos foi ainda maior, chegando a 36% Com refrigerantes e bebidas açucaradas, o fenômeno foi semelhante: 29% responderam que aumentaram o seu consumo durante a pandemia, enquanto nas residências com crianças entre 0 e 17 anos o número chegou a 34%.
“Essa mudança no hábito alimentar a gente já vinha percebendo, ela não é de agora. É uma mudança que, infelizmente, faz parte de uma epidemia global de aumento de peso e da obesidade por conta da alteração no consumo de alimentos. As pessoas estão migrando cada vez mais para alimentos ultraprocessados, com muito sal, gordura, açúcar, aditivos e pouquíssimo nutriente”, explica a chefe de Saúde do Unicef no Brasil, Cristina Albuquerque.
Falta de dinheiro
Outro dado preocupante trazido pela pesquisa do Unicef é que muitos brasileiros ficaram sem comer por falta de dinheiro. Cerca de 8% da população com crianças e adolescentes em casa, o que corresponde a 5,5 milhões de pessoas, deixou de comer porque não havia mais dinheiro para comprar.
Jackson de Toni, economista do Ibmec/DF, classifica como complexo o tema da insegurança alimentar no Brasil e acredita ser um desafio enfrentado há muitos anos no País. “Como qualquer País desigual e em desenvolvimento, o Brasil possui uma parte da população muito vulnerável. E a insegurança alimentar atinge exatamente a população de baixa renda.”
“Sempre quando há crise econômica, problemas de desemprego em massa, a grande preocupação que os governos devem ter é exatamente garantir o mínimo para a sobrevivência da população de baixa renda, que gasta a maior parte do que recebe em alimentação”, enfatiza o economista. Para corroborar com essa constatação, o economista também cita a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, realizada em 2017-2018, que indicou que cerca de 60% do orçamento das famílias com até dois salários-mínimos vão para a alimentação.
Os recentes dados da POF também apontam para uma mudança nos hábitos alimentares dos brasileiros. Houve uma redução no consumo de alimentos considerados básicos, como o arroz e feijão: o consumo de feijão variou de 72,8% em 2008-2009 para 60,0% em 2017. O arroz também passou de 84,0% para 76,1%.
“Quando pensamos nessas famílias que tiveram uma renda diminuída, que não têm acesso a alimentos saudáveis, é desafiador para eles ter uma alimentação assim em tempos de crise. Precisamos pensar para além desses tempos de crise”, completa Stephanie Amaral, do UNICEF.
Entre as alternativas citadas pelas especialistas, está a de consumir alimentos da estação (especialmente frutas e verduras) e voltar para o básico de todo brasileiro: arroz e feijão. “Cozinhar é um hábito bom, normalmente associado a hábitos mais saudáveis. É descascar mais e desembalar menos”, sugere a oficial de saúde do UNICEF, Stephanie Amaral.
Dificuldade de acesso e consumo de alimentos industrializados
A manicure Nercília de Melo, 37 anos, é moradora do bairro Jardim Violeta, em Fortaleza (CE). Na casa dela, a alimentação tem que ser dividida entre dois adultos e quatro crianças, com idades entre 5 e 15 anos. “Eles podem comer o que posso dar”, relata.
A rotina alimentar dela e da família, especialmente na pandemia, é trabalhar com o que tem. “De manhã, é um café com pão, depois vem o almoço. E o que sobra do almoço eu dou na janta.”
Nercília confessa que o consumo de industrializados é uma realidade em casa, especialmente entre os filhos. “Eu não como tanto, mas eles gostam muito de mortadela. É mais em conta, né? Mortadela, salsicha. Compro esses produtos porque são mais baratos, não vou mentir. A mortadela dá para comprar e fatiar, então dá para todos. É mais barato para mim que sou mãe.”
E relatos assim não são uma exceção. Stephanie Amaral explica que muitas famílias vulneráveis, especialmente as que moram nas favelas, vivem no que os estudos chamam de “desertos alimentares”. “São áreas em que é difícil o acesso a alimentos frescos, como frutas e verduras. E isso é muito mais predominante em áreas de maior vulnerabilidade, em bairros periféricos. É mais fácil a gente encontrar lojas de conveniência, que vendem alimentos industrializados, do que encontrar uma feira, um sacolão. Isso significa que uma pessoa que mora em bairros assim precisa se deslocar para ter acesso a alimentos saudáveis.”
Com a pandemia, segundo a nutricionista, esse acesso ficou mais difícil ainda, especialmente pelas orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) de manter o distanciamento e isolamento social. “A pandemia alterou nossa possibilidade de deslocamento, já que, para evitar a transmissão da Covid-19, a gente precisa ficar em casa. São fatores que colaboram para haver essa mudança no padrão de alimentação e para que as pessoas consumam mais alimentos industrializados”, constata.