Pela casa simples do Jardim da Paz, à beira da Represa Billings, em Ribeirão Pires, a justiça ainda não passou. Lá morava a estudante Gesiele dos Santos Varolo, atropelada e morta aos 13 anos por um jet ski, em 11 de fevereiro de 1997.
No último domingo, Antonio Edvan Moreira de Carvalho, de 40 anos, provocou a morte do próprio filho, Guilherme Pereira de Carvalho, de 9, quase no mesmo local, também com um jet ski. Isso mexeu com o antigo desejo da cozinheira Marilene dos Santos Varolo, de 46 anos, mãe de Gesiele, de ver na cadeia o responsável por ter matado a sua filha.
O processo que apontava como responsável um comerciante, então com 30 anos, foi arquivado pela Justiça. Ele foi indiciado pela polícia por homicídio culposo (sem intenção) e omissão de socorro. Dirigia sem habilitação um jet ski da família de sua mulher, orientais da zona leste de São Paulo. “Não deu em nada.”
O cheiro de café na cozinha ainda traz para Marilene a lembrança das manhãs ao lado da filha, a segunda de quatro. “Era esperta, animada, brincalhona. Trabalhava desde pequena cuidando de criança, passando roupa para os vizinhos. A minha rainha.” A seguir, os principais trechos do depoimento de Marilene.
“Eu me lembro de tudo. Estava na pia lavando louça, quando ela chegou e pediu ‘mãe, posso ir para a represa, vamos lá tomar um banho’. Ela estava de castigo, eu não gostava de ir lá, mas, para satisfazê-la, falei ‘então vamos’. Fomos eu, ela, a minha irmã, os outros filhos, todo mundo. Chegamos às 10h, era um domingo de carnaval. E eles (jet skis) passando. Não só eles, mas vários, bagunçando com tudo, fazendo onda. Continua aquilo ali, até hoje.
Eu subi para casa, ela ficou. O acidente foi umas 2 da tarde. Quando morreu, chegaram a falar que ela se afogou. Como assim, se afogou? Ela foi criada aqui, sabia nadar. Depois, ficou comprovado que não foi afogamento, não tinha água no pulmão. Morreu da pancada do jet ski. Cabia uma mão na cabeça dela.
Minha filha foi pega pelas costas. Ela mergulhou e, quando levantou, foi atingida pelo jet ski. A ponta bateu na cabeça dela. Ele (o atropelador) estava em pé. Fazia daquele jeito para impressionar os outros, a corja que vinha logo atrás. Minha filha morreu na hora, acabou. Ele não deu a chance de pedir socorro nem prestou socorro. Ele fugiu e largou o corpo da minha filha lá. Ninguém vinha para socorrer. Tive de meter a boca até para resgatarem ela, o que aconteceu só um dia depois. Até hoje não tem fiscalização, não passa uma polícia que seja para falar ‘ei, sai daí, porque é perigoso’. Aquilo ali lota, é área de lazer. Tinha muita gente, porque foi no meio de um feriado. E, se chamar uma viatura, vai demorar dez anos para chegar. Se tivesse fiscalização, esse rapaz não teria feito o que fez. Alguém o teria impedido de passar por ali. Mas na velocidade em que ele estava…
Ele fugiu no dia e, quando apareceu, prestou depoimento durante a madrugada. Dois advogados me pediram uma série de documentos para dar entrada no processo, mas não fizeram nada depois. Eles mesmos disseram que preso ele não iria, porque não teve intenção de matar. Como não teve a intenção, se passou do jeito que passou e agiu de uma forma que era proibida? Eu me via como a assassina da minha filha. Eles (advogados contratados para defender o caso) queriam que eu me sentisse assim, culpada pelo que aconteceu. Fiquei com medo de trocar de advogado e ter de pagar para eles. Um dia encontrei com eles em São Paulo e me falaram que o responsável pela morte da minha filha estava morto, que não adiantava mais.
Eu passei por isso tudo para não dar em nada. Várias pessoas falavam que eu não conseguiria a prisão do responsável, mas diziam que era para eu mexer no bolso deles, porque aí eles sentiriam. Mas, realmente, não deu em nada. Eu tentei. Falei ‘então vou deixar nas mãos de Deus’. Mas olha aí o que aconteceu agora (o novo acidente). Se tivesse fiscalização na represa…
Quando soube desse menino aqui na ponte, disse, ‘ô, meu Deus, o que vai ser dessa família agora?’ E aquele que passou em cima da menininha lá em Bertioga, não é impunidade? Se a família dela tiver dinheiro para brigar pode conseguir justiça, mas e se for pobre como eu? Como aconteceu com a minha família, pode acontecer com outras. Eu não estou contente, ainda quero Justiça pelo que aconteceu.
A impunidade foi grande, e por todas as partes. Não queria nada, não queria dinheiro. Queria que ele e ela (o condutor e a dona do jet ski) fossem presos. Ela era a dona do jet ski, quem deu a arma para ele fazer o que fez.
Tenho guardadas, mas não gosto de ver as fotos dos jornais da época. Já outras coisas a gente até joga fora para não lembrar. A minha flor se foi. Olho pela janela e sei que a minha filha não aparecerá. Pedi para que um rapaz recuperasse uma foto dela para mim. Foi na semana passada, antes do acidente, não é uma coincidência? O apelido dela era Gisa, o amor da minha vida. O meu sofrimento acontece todos os dias. Nunca vou esquecer do que fizeram.”