José Divino da Silva, de 58 anos, ainda guarda na memória os dias em que dormia em um alojamento que se misturava a um chiqueiro em uma fazenda de algodão, em Primavera do Leste, interior do Mato Grosso. “Só tinha uma barreirinha separando. À noite, os porcos vinham”, conta ele à BBC Brasil. 

“E a comida era muito ruim. Só tinha arroz. De vez em quando alguém caçava tatu e a gente comia a carne”, diz Divino, que também lembra das longas jornadas de trabalho, que começavam às quatro da manhã e terminavam só quando o sol se punha.

Situação semelhante também viveu Durval Fernandes, de 39 anos, que trabalhava em uma fazenda de cana-de-açúcar.

A indústria da cana, que durante três séculos alimentou o tráfico de escravos africanos para o Brasil, continua sendo, 125 anos após a abolição, um dos setores em que foram registrados mais casos de trabalho escravo no país, ao lado de pecuária, carvoarias e outras plantações agrícolas, como algodão e soja.

“Desde os 11 anos, tudo o que fiz na vida foi cortar cana. Nunca soube fazer outra coisa”, disse Durval à BBC Brasil.

Quando se mudou de Alagoas para o Mato Grosso, em 1998, apostou em uma vida melhor. Mas o trabalho cortando cana era exaustivo e pagava muito pouco.

“Começava às cinco da manhã e ia até o sol se esconder, de segunda a sábado”, relembra. “A gente tinha só dez minutos para comer, e era sempre a mesma coisa. Arroz com feijão. De vez em quando carne”, relembra.

Estádio da Copa

Segundo o artigo 149 do Código Penal brasileiro, as condições degradantes de trabalho a que José Divino e Durval Fernandes eram submetidos, combinadas a jornadas exaustivas e atrasos salariais, se inserem na definição de trabalho escravo contemporâneo.

Com base nisso, há cerca de três anos, auditores-fiscais ligados ao Ministério do Trabalho e Emprego no Mato Grosso intervieram nas fazendas onde os dois trabalhavam e libertaram dezenas de trabalhadores. Foi quando a vida deles começou a mudar. Além de ganhar a liberdade, os dois hoje estão inseridos no mercado de trabalho.

Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, o Mato Grosso é o segundo Estado no número de trabalhadores resgatados (5.737) desde 1999, depois do Pará (12.060).

Desde que o governo brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo no país, em 1995, 44 mil trabalhadores foram resgatados. Deste total, mais de 30 mil foram localizados no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país.

Um dos maiores desafios no combate ao trabalho escravo no Brasil é não deixar que a mão de obra resgatada caia novamente nas garras dos “gatos”, como são conhecidos os aliciadores que seduzem trabalhadores ingênuos e desesperados por trabalho e que acabam mergulhando em condições de trabalho análogas à escravidão – nas fazendas e em canteiros de obras nas grandes cidades.

Para tentar reverter essa tendência e baixar o índice de reincidência ao trabalho escravo no país, hoje em 10%, segundo informações da ONG Repórter Brasil, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Mato Grosso criou Projeto de Qualificação Ação Integrada.

Com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a iniciativa pioneira no Brasil nasceu em Cuiabá e agora será expandido para outros Estados do Brasil.

Desde que foi criado, em 2009, 434 trabalhadores com faixa etária entre 20 e 40 anos passaram pelo programa, que oferece cursos de alfabetização e qualificação profissional nas áreas de construção civil, indústria, operação de máquinas, corte e costura, manejo de suínos, entre outros. Cerca de 85% conseguiram emprego com carteira assinada.

Para Valdiney de Arruda, Superintendente Regional do Trabalho e Emprego no Mato Grosso e idealizador do Ação Integrada, o sucesso está na parceria com empresas, que financiam parte dos cursos e absorvem a mão de obra.

Uma das empresas parceiras é o consórcio Santa Bárbara/Mendes Júnior, responsável pela construção do estádio Arena Pantanal, em Cuiabá, que vai abrigar quatro jogos da Copa do Mundo, no ano que vem.

Durval Fernandes e José Divino são dois dos 25 operários empregados na Arena e que passaram pelos cursos do Ação Integrada para construção civil. Durval é armador e José Divino é zelador do alojamento e auxiliar de serviços gerais.

“Minha vida melhorou muito. Não sabia nem escrever meu nome antes e hoje tenho um trabalho e sou livre”, diz Durval.

Alcance nacional

Na semana passada, o Sindicato Nacional dos Auditores do Trabalho (Sinait) e a OIT lançaram o projeto nacional da iniciativa do Mato Grosso na Subcomissão do Tráfico de Pessoas e Combate ao Trabalho Escravo do Senado. Rio de Janeiro e São Paulo devem ser os primeiros a implantarem o modelo, já no ano que vem. Goiás, Bahia, Paraná, Maranhão e Pará, todos com altos índices de trabalho escravo, virão em seguida.

Segundo o secretário-executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), José Guerra, apesar de haver outras iniciativas semelhantes no Brasil, o projeto no Mato Grosso é inédito porque aborda o problema da escravidão de forma completa, desde a prevenção, passando pela qualificação e a reinserção no mercado de trabalho.

“Queremos espalhar a ideia para que seja replicada por outros Estados”, disse Guerra à BBC Brasil.

Valdiney de Arruda diz que os trabalhadores contemplados pelo projeto são identificados a partir do cadastro do seguro-desemprego resgatado, uma modalidade de benefício específica para trabalhadores libertados de condições degradantes.

Com base nos dados, uma equipe móvel do programa vai às localidades onde estão essas pessoas e lhes oferecem a oportunidade de passar até um ano em Cuiabá estudando, com todos os gastos pagos e a chance de conseguir um emprego depois.

“Os cursos contemplam não somente os trabalhadores resgatados, mas também parentes e amigos em situação de vulnerabilidade”, explica Arruda. “Mas o segredo para mantê-las estudando é o pagamento da bolsa de um salário mínimo. Do contrário, eles não ficam”, afirma o superintendente, acrescentando que, além do financiamento aportado por empresas parceiras, o orçamento do programa vem das multas e indenizações pagas pelos empregadores infratores.

Leonardo Sakamoto, fundador da ONG Repórter Brasil, que há mais de uma década investiga escravidão contemporânea no país, diz que iniciativas como a do Mato Grosso são válidas, mas defende que o governo atue de forma mais efetiva na prevenção.

“Uma reforma agrária decente, o apoio às famílias de pequenos produtores e mais oportunidades de emprego no interior são algumas das medidas que têm que ser tomadas logo para diminuir o número de trabalhadores que caem na rede de exploração repetidas vezes”, diz ele. “Do contrário, é como jogar um pano para parar um vazamento. Não adianta, tem que concertar o encanamento”, compara o jornalista.

Esperança

Em visita à Arena Pantanal, em março, a chefe do Programa Especial de Ação contra o Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Beate Andrees, conversou com dois trabalhadores que ganharam vida nova.

Em entrevista à BBC Brasil, ela disse que a iniciativa no Brasil pode fazer a diferença ao oferecer “uma alternativa real e viável para milhares de trabalhadores”. “A esperança que isso traz para esses trabalhadores que eu conheci em Cuiabá vale muito mais do que dinheiro”, disse ela em um artigo publicado no blog da organização.

E por falar em esperança, Durval diz que sua ambição agora é fazer o curso de operador de máquinas. E quer também assistir a um jogo no estádio que está ajudando a construir.

Ele diz não estar ansioso para ver a seleção brasileira entrar em campo. “Estou torcendo mesmo é pela Argentina. Nossa seleção não tem mais jogador bom”, brinca.