Na primeira segunda-feira após os ataques, no dia 16 de novembro, era preciso voltar à rotina, vencer o cansaço das últimas noites mal dormidas e encarar as ruas de Paris. A primeira experiência fora de casa foi a de ir ao supermercado para repor o estoque de comida, comprar pão e o jornal Le Figaro. Foi quando comecei a notar que, malgrado o esforço das pessoas para retomarem suas vidas, havia algo de diferente: a espontaneidade dos franceses tinha dado lugar ao sentimento de medo e de preocupação, as pessoas olhavam-se desconfiadas e qualquer barulho poderia virar um alarde. Na Praça da République, lugar marcado por protestos históricos, a explosão de uma simples vela colocada em homenagem aos mortos fez uma multidão pensar que se tratava de um novo ataque. Nesse episódio, a rápida dispersão provocou tumulto, quedas e perdas de crianças que estavam acompanhadas de seus pais.

Nos dias seguintes, os parisienses deram provas de como estavam abalados. Pela televisão tudo parecia longe, mas o retorno ao curso de francês foi suficiente para me sentir próximo ao evento. Pude notar o desespero de algumas famílias ao saber, no decorrer da aula, que a cunhada de uma colega havia sido morta em um dos cafés atacados e que as filhas de outra, por muito pouco, não se tornaram novas vítimas dos terroristas no Bataclan ao saírem do local minutos antes da ação começar.
Na quinta-feira à noite, 19 de novembro, concluí que eu deveria passar mais tempo nas ruas para sentir a reação dos parisienses ao ocorrido. Por isso, saí da residência, passei na banca para comprar o último volume da revista francesa Le Point e terminei o trajeto na Sorbonne para pegar um livro que me faltava. A guarda montada na entrada desse prédio e a agitação de seguranças já evidenciavam que o clima de tensão havia penetrado a universidade. Ali, sentado em um café e observando as conversas paralelas sobre os últimos ocorridos, comecei a ler a referida revista.
Logo nas primeiras páginas, deparei-me com um texto do próprio diretor da Le Point, Étienne Gernelle, intitulado Nous, les vivant, que textualiza muito bem a opinião de muitos franceses sobre o atual momento. Destaca o jornalista que os corpos das vítimas, esticados nas ruas, trazem uma mensagem: “nos fazem lembrar o preço da liberdade. Eles nos dizem para ficarmos em pé”. Nesse texto introdutório, o autor ainda ressalta que não há razão para termos complexos e deixarmos de ir, por exemplo, ao Stade de France ou aos cafés de Paris, pois ser livre, nessas horas, é perder, segundo ele, o medo e voltar a exprimir nossa espontaneidade natural.
Já no dia 20 de novembro, ouvindo de minha supervisora que “por mais que estejamos tristes, devemos voltar ao trabalho”, pude começar a perceber, depois de uma longa e conturbada semana, outra mudança no clima social de Paris: os franceses querem demarcar agora, passados alguns dias, sua determinação para contornar o problema. Pelo que vejo, buscam apagar as duras lembranças seguindo o curso de suas vidas, como se o caminho diário ao trabalho, à universidade, ao centro e aos bistrôs representasse uma defesa contra o terror. Além dessa saída, não deixaram de expressar a solidariedade aos seus quando se reuniram, no final do dia, na République, para manifestarem o repúdio aos atos de barbárie.
Domingo, dia 22, percebo que os franceses se depararam, ao longo da semana, com duas escolhas: fechar-se ou continuar. Ficaram com a segunda. A fala de um francês que perdeu a esposa, na última tragédia, sintetiza tudo: “Querem que eu tenha medo, que olhe para os meus conterrâneos com um olhar desconfiado, que eu sacrifique a minha liberdade pela segurança. Perderam. Continuamos a jogar da mesma maneira”.

*pós-doutorando e professor do programa de pós-graduação em História da Unesp/Câmpus de Franca. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado junto à Université Paris Ouest Nanterre, la Défense com bolsa Fapesp.