As vidas de Weverton Almeida Santos, o Ferrugem, capixaba de Pedro Canário, e Daniel Tiago Duarte, o Danielzinho, paulistano da Mooca, estão fortemente ligadas desde as 18h43 do dia 10 de março de 2013.

Elas se encontraram de maneira dramática no estádio Moisés Lucarelli, da Ponte Preta, em Campinas. Exatamente na linha externa da meia lua. Ferrugem, 1,82m e 67 quilos volante da Ponte, recebeu a bola de frente para seu campo, fez um giro de 180 graus, deu dois passos e preparou-se para lançar Cicinho que se projetava para o campo de defesa do São Caetano. A Ponte vencia por 1 a 0.

Antes de conseguir fazer o passe – “sou um volante de saída de bola, não fico apenas na marcação” – Ferrugem foi tocado por trás, através de um carrinho de Danielzinho, 1,78 m e 62 quilos atacante do São Caetano.

Com a perna direita no chão, Danielzinho acertou, com a sua perna esquerda, a perna esquerda de Ferrugem. O pé do volante ficou preso no chão. Houve fratura de fíbula e luxação do osso tálus, do tornozelo, além de rompimento de ligamentos mediais.

O árbitro Luiz Vanderlei Martinucho deu cartão amarelo a Danielzinho. Na súmula do jogo, escreveu o motivo: “por calçar o adversário”. Exatamente, letra por letra, a mesma utilizada para justificar outros quatro cartões amarelos que deu na partida, a Ferron e Bruno Silva, da Ponte;  Pirão e Marcel, do São Caetano.

Não houve expulsão, mas o vínculo dramático entre dois jovens de 25 anos – Danielzinho é um mês mais velho – que viviam o melhor momento de suas vidas, o início da concretização de muitos sonhos, se estabeleceu.

“Hoje, eu faço fisioterapia por sete horas diárias, no mínimo. Quero voltar logo”, diz Ferrugem, um paciente muito elogiado por médicos e fisioterapeutas. “Hoje, onde eu estou jogando, me chamam de assassino. Não mereço isso, mas não posso desanimar. Preciso manter o foco na minha carreira”, afirma Danielzinho.

Eles têm visões diferentes do lance. “Foi por trás. Carrinho por trás não pode existir, é muito perigoso. Ele foi muito imprudente”, diz a vítima. “Foi de lado. Carrinho de lado, pode ver. O que acontece é que atacante não sabe marcar, não sabe dar carrinho. O Geninho pediu para eu cercar o volante deles, não estou dizendo que é culpa dele, todo treinador pede isso e eu tentei fazer. E acabei machucando o Ferrugem”.

Em São Mateus, no Espírito Santo, o lance acabou com a festa que dona Neusa e seu Anemias haviam preparado para o filho. “Pusemos um telão em casa para ver o jogo com os amigos e comer um churrasco. Quando eu vi o pé dele daquele jeito, foi um desespero só. Comecei a chorar e a pensar em um jeito de ir para Campinas. Nem vi mais o jogo, ninguém viu. So uns fanáticos lá”, diz a mãe de Ferrugem. Ela está em Campinas, onde exerce o direito de mimar o filho. “Faço comida da roça para ele, carne, batata, arroz, feijão. E, na hora do dengo, chamo de Fefê”

O fisioterapeuta Rodrigo Iralah, da Ponte, que via o jogo, percebeu, através de gestos desesperados de jogadores de ambos os times que havia acontecido algo muito grave e desceu para o campo.

Ferrugem já estava fora do gramado, retirado pelo carrinho que substitui a maca. O médico Sérgio Rosa estava cortando, com uma tesoura, o meião do jogador, que gritava alucinadamente. “O pé estava virado para trás. Parecia um curupira”, lembra Iralah. “Nosso médico fez a redução, colocou o osso no lugar e descemos para o vestiário”. Lá, a perna foi imobilizada e o Ferrugem foi para a ambulância que o levaria para o hospital. Tomou remédio na veia para diminuir a dor.

“Meu único pensamento era sobre a minha carreira. Tinha certeza que tudo terminava ali, que eu ia ter de procurar outra coisa para fazer”, lembra o jogador. Em algum momento entre a saída do campo e a chegada ao hospital, Danielzinho fez um gol. O único do São Caetano, que perdia por 2 a 1 e ainda levaria o terceiro. “Eu estava abalado, mas tinha de jogar. Tive a chance e marquei”, lembra.

No hospital, constatou-se que houve fratura da fíbula, luxação do osso tálus, do tornozelo e rompimento de ligamentos mediais. Notícias ruins, esperadas. E uma boa, ansiosamente aguardada. “A cartilagem não foi afetada. Se fosse, o trabalho seria muito maior. Hoje, prevemos uma recuperação em seis meses. Ele vai ajudar a Ponte no Brasileiro, diz Ricardo Garcia, também fisioterapeuta.

Duas horas depois do jogo e um dia antes da operação, o celular de Ferrugem tocou. Quem atendeu foi Roberta, a esposa. Era Danielzinho. “Fiz questão de ligar na hora, , expliquei que não tive culpa, fiz meu papel. Ela entendeu”. Ele vai ter de se explicar por muito tempo. Na Ponte, todos de lembram de um carrinho do mesmo Danielzinho contra Siloé, do Guarani. “Agora, falam de tudo. A disputa com o Siloé foi de frente, não teve maldade nenhuma, como essa outra também.”

Ferrugem agora tem uma placa na fíbula, fixada por dois parafusos. A cicatriz é de 10 centímetros. A perna esquerda nitidamente está mais fina que a direita. Ainda não pode pisar no chão. Dispensa ao máximo as muletas e o ombro dos médicos. Movimenta-se pulando na sala de fisioterapia. “Pareço um saci ruivo”, diz, em um saudável movimento de autogozação.

Ele consegue dirigir seu carro, automático. Depois de deixá-lo na garagem, sobe com muletas pelo elevador. Em casa, no sofá, ao lado da mãe, do irmão Darnlei e do filho Brayan, de um ano, lembra de como a vida foi dura até hoje. “Comecei no Criciúma, mas fui dispensado nas categorias de base. Foi a primeira vez que pensei em desistir do futebol. Fui para a casa dos meus pais em São Mateus, no Espírito Santo e fiquei por lá. Aí, recebi um convite para disputar a Segunda divisão do campeonato capixaba pelo São Mateus. Resolvi apostar e fomos campeões”.

Estar na Ponte e no São Caetano é o auge da carreira dos dois jogadores. “Vi muita tristeza no futebol, clube que atrasa salário, por exemplo. Quando estava no Gama, precisei fazer uma cirurgia no ombro e só consegui porque os médicos me ajudaram na internação. Se dependesse do clube, não ia dar nada certo. Por isso, estar no futebol paulista é uma conquista, aquele era meu primeiro jogo como titular”, diz Ferrugem. “Eu estou bem esse ano. Já ouvi alguma coisa de que posso ir para um time grande. Vai ser muito bom. Tenho oito pessoas que dependem de mim”, fala Danielzinho.

Nos dois apartamentos, há um clima de amor pelo ar. Em São Caetano,  muitas fotos do casal, em quadros, porta-retratos, canecas e até travesseiros. Em duas delas, há, com letras grandes, a inscrição “Jornal da Família”. Na parede, uma camisa do São Bernardo, com bela dedicatória à mulher. Na outra, uma foto da filha, Iasmin, de dois anos, vestida de Minie. “Quando ela falou papai pela primeira vez eu quase chorei. Minha mulher ficou morrendo de ciúme”.

Em Campinas, há duas fotos muito bonitas do casamento de Weverton e Roberta. Em uma delas, é possível ver uma ligeira semelhança com Schweinsteiger, do Bayern de Munique e da seleção alemã. “Já me disseram que eu pareço sim. Pode me chamar Ferrugensteiger”, diz, antes de soltar uma gargalhada.