O ex-detento do complexo penitenciário do Carandiru Antonio Carlos Dias, 47, afirmou que viu “muitos presos” serem mortos por policiais militares enquanto “escalavam pilhas de corpos” de internos vítimas do massacre, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992.
Dias é a primeira testemunha ouvida no júri popular de 26 policiais militares julgados pela morte de 15 presos que estavam no primeiro andar do pavilhão 9, onde morreram os 111 presos da invasão policial que conteria, naquele dia, uma rebelião. O julgamento acontece no Fórum Criminal da Barra Funda (zona oeste de São Paulo).
Além do ex-detento, há mais 13 testemunhas de acusação –entre elas oito vitimas e o perito Osvaldo Negrini. Já a defesa arrolou dez testemunhas, entre elas o ex-governador Luiz Antônio Fleury Filho e o ex-secretário de Segurança Pública Pedro Franco de Campos.
Durante o depoimento, a testemunha pediu que os PMs –24 réus no total, já que dois deles não foram– não estivessem presentes na sala do júri. Ele foi atendido pelo juiz José Augusto Nardy Marzagão.
O ex-detento relatou que brigas entre internos faziam parte da rotina do presídio e que, naquele dia, a “normalidade” que se instauraria na sequência a esses episódios só foi quebrada pela entrada da PM.
“A polícia chegou e foi aquele tumulto para os presos entrarem nas celas; eles tinham medo da polícia. Achávamos que lá dentro estaríamos mais seguros (…). Começamos a escutar barulho, como se alguém pegasse uma lata e começasse a bater –só depois percebemos que eram rajadas de metralhadora”, disse, ele que afirmou ter entrado na cela com outros “quatro ou cinco” internos.
A testemunha se emocionou por alguns minutos ao ser indagada pelo juiz sobre os instantes seguintes ao massacre –o qual, mencionou, durou cerca de uma hora.
“Fizeram um corredor de policiais para ter acesso à escada [ao pátio]. Começamos a descer [das celas], em fila, e teríamos que passar por esse corredor, onde fomos brutalmente espancados. Os policiais tinham facas na ponta das armas e nos espetavam nas pernas, nas nádegas”, disse.
Na sequência, a visão do pátio, segundo Dias, era pouco animadora. “Eram montanhas de corpos, todos caídos, alguns agonizando. Teríamos que passar por cima deles, escalá-los, e muitos morreram assim –se caíssem, eles [policiais] atiravam e não levantavam mais”, relatou.
Indagado pelo juiz qual era a visão que teve da cena, o ex-detento disse ter visto três ou quatro colegas à sua frente. “Os de trás, não vi, era sempre em frente que tínhamos que olhar. Muitos morreram só de olhar [os PMs nos olhos]; outros morreram porque caíram, por causa das facadas, e não aguentaram. Consegui vencer e passar.”
Dias afirmou perante o júri também ter visto presos serem dilacerados por cães, já rendidos e nus, no pátio, assim como presos terem sido mortos, mais tarde, enquanto ajudavam a liberar os acessos do pavilhão obstruídos por corpos.
O ex-detento passou cinco anos no Carandiru, por assalto. Teria de ficar um ano e oito meses, por se tratar de réu primário, mas só conseguiu o benefício da progressão de pena depois de deixar o pavilhão 8, de presos mais perigosos, para onde foi após o massacre.
“Número de vítimas foi no mínimo o dobro”
Antes de encerrar as respostas ao magistrado, Dias fez questão de citar um “detalhe” sobre o qual, disse, ficou “pensando seriamente em não dizer para não alongar a história”.
Ele disse que, na noite do massacre, horas depois, foi levado para uma cela no quinto andar do pavilhão. Lá, ouviu barulho de motor de trator e olhou pela janela. “Vi uma caçamba com vários corpos em cima dela”, citou.
Para a testemunha, tratavam-se de presos que não tinham familiares e seriam considerados, uma vez mortos, indigentes. “Só os corpos que vi caídos do segundo andar até o pátio já davam 100 pessoas mortas”, declarou. “Acredito que o número de vítimas é no mínimo o dobro do que falaram”.
Durante a exposição ao juiz, no entanto, o ex-detento não soube identificar policiais que teriam participado das mortes. A dificuldade, segundo ele, era o receio de tentar alguma identificação e ser morto.
Defesa e acusação
Na inquirição feita à testemunha, na sequência ao magistrado, o promotor Fernando Ribeiro quis saber se os presos possuíam armas brancas –tais como estiletes, facas e pedaços de madeira –quando os PMs invadiram a penitenciária.
“[Os internos] Tinham medo de advertência; quem é pego com arma é prejudicado na progressão de regime. Jogaram tudo [no pátio] antes da invasão”, disse.
À advogada de todos os réus, Ieda Ribeiro de Souza, o ex-detento afirmou que as armas dos internos eram guardadas normalmente nos banheiros e nas paredes, dentro das celas. Sobre armas de fogo, porém, negou à advogada que soubesse da existência delas lá.
As perguntas de defesa e acusação têm como pano de fundo as teses de que os PMs agiram perante presos já desarmados, e, muitos, já rendidos, como alega a promotoria, ou perante presos com armas e em rebelião, como sustenta a defesa dos policiais acusados.
Indagado pelo promotor sobre que avaliação faz da PM passados mais de 20 anos do massacre, a testemunha resumiu: “Há os bons e há os maus. Acredito que, em maior quantidade, [há] os maus”, respondeu.
Júri terá seis homens e uma mulher
O Conselho de Sentença que decidirá o futuro dos 26 policiais militares será composto por seis homens e uma mulher –a grande maioria jovens, aparentando idades entre 20 e 30 anos.
Dois dos réus não compareceram à sessão. Os que estão presentes entraram pelos fundos do fórum, longe da imprensa e do acesso do público ao prédio.
Os jurados foram selecionados em um grupo de 50 pessoas convocadas pela Justiça. Eles devem ter no mínimo 18 anos completos –menos, portanto, que os mais de 20 anos e seis meses decorridos do episódio classificado em 2000 como massacre por parte da OEA (Organização dos Estados Americanos).
O júri chegou a começar na última segunda (8), mas teve que ser adiado porque uma jurada passou mal e foi dispensada. Pelas regras judiciárias, uma vez sorteados os sete jurados que formam o Conselho de Sentença, a saída de algum deles implica em se formar um novo conselho.
Para isso, o Tribunal de Justiça de São Paulo convocou mais 33 pessoas, além de 17 das 50 convocadas semana passada, a fim de realizar novo sorteio.
84 PMs denunciados
No total, 84 policiais militares foram denunciados –destes, cinco já morreram, entre os quais o comandante da operação policial, o coronel da reserva Ubiratan Guimarães, assassinado em São Paulo em 2006, mesmo ano em que acabou sendo absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo de uma condenação a 623 anos que obtivera em 2001 pelas mortes no Carandiru.
Após a sentença, Marzagão –que em setembro de 2012 designou a data do júri– deverá definir a data do próximo júri: dessa vez, o de 28 PMs, da Rota, acusados pela morte de 73 presos do terceiro pavimento.
O magistrado disse que espera julgar o caso todo até o final deste ano. De todas as acusações, 86, de lesão corporal leve, já prescreveram. As de homicídio prescrevem em 2020.