O STF deverá julgar ainda neste semestre as quatro ações de inconstitucionalidade que questionam a quase totalidade do chamado “Novo Código Florestal” (58 artigos). Fruto de um espúrio acordo fechado entre o PT e os ruralistas, entre suposta esquerda e ultradireita, o novo código, de 2012, é o maior retrocesso de nossas instituições jurídicas. De todos os malfeitos deste governo – mensalão, petrolão, desemprego, inflação, etc – nada se compara aos absurdos perpetrados por esta lei, que se destina, sem qualquer dúvida, a beneficiar o proprietário rural infrator. Sua lógica é esta: o ambiente, valor coletivo, fica sempre em segundo plano. Com a nova lei, o Direito do Ambiente transforma-se num Direito contra o Ambiente. José Eli da Veiga diz, com razão, que ele terá o mesmo efeito nefasto da Lei de Terras de 1850.
Vou dar alguns exemplos desses absurdos. Em primeiro lugar, o texto está cheio de “venenos”, de “cascas de banana” interpretativas. Vejamos o caso das áreas de preservação no entorno das minas ou olhos d’água, que são afloramentos do lençol freático. O código de 1965 considerava protegidas as florestas e todas as formas de vegetação natural num raio mínimo de 50m das nascentes, “ainda que intermitentes”. O novo código muda a redação protegendo apenas “as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes”. O que era “intermitente” virou “perene”. Ora, isto é ótimo para o proprietário: se for autuado basta alegar que a mina não é perene. Assim, será formado um processo judicial que dependerá de perícia e levará anos, ou décadas, para se encerrar. Bingo!
Mas nada é pior do que o conceito de área rural consolidada que é a “área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008”. Para os donos dela a lei dá uma ampla anistia. O proprietário que desmatou área (que deveria ser) preservada até 2008 ganhou um presente do governo: a anistia das penalidades: não vai pagar multa e nem sofre qualquer pena. Esta norma é claramente inconstitucional e o Ministério Público Federal ingressou ações para questionar tanto isso quanto a possibilidade de compensar área de preservação permanente e reserva legal, numa confusão conceitual que não tem nenhum cabimento. Com função instrumental, a existência da APP decorre de algum bem ambiental, como a água, o mangue, as encostas, etc. Já o reserva legal visa à sustentabilidade sem qualquer outro fim, ou seja, busca “promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa”.
Com isto, o quadro normativo da proteção ambiental no Brasil entrou num buraco negro. Foi publicada a lei, em 2012 com muitos vetos, inúmeras modificações decorrentes de medida provisória, problemas de regulamentação – e não se sabe, afinal, o que vale. Além disso, o novo código pode vir a ser julgado inconstitucional pelo STF. Assim, caímos num vácuo legislativo que beneficia, evidentemente, os proprietários rurais, que no Congresso Nacional foram representados por gente como os senadores Ronaldo Caiado e Kátia Abreu (então no DEM e hoje no PMDB). Atualmente, ambos estão em frentes opostas. A segunda é Ministra da Agricultura da Dilma. Mas ambos estavam juntinhos, do mesmo lado na defesa dos proprietários e em nome de uma suposta “segurança jurídica para produzir”. Leia-se: desmatar. Não é à toa que ela foi apelidada de “rainha da motosserra”.
Algum dia alguém fará um resgate das mazelas na aprovação do novo código, contando uma história que contém diversos ingredientes. Teve uma ministra sem qualquer autoridade (no sentido romano do termo), que é Izabella Teixeira, titular do cargo a partir de 2010. Ela está longe de ter a respeitabilidade de uma Marina Silva ou de um Carlos Minc, que a antecederam. Marina, como se sabe, deixou no Ministério por força do licenciamento de Belo Monte, usina agora inaugurada, que é exemplo de “inadimplência socioambiental”. Teve um governo fraco precisando de apoio no Congresso e por isso negociando tudo o que era possível, aceitando qualquer negócio. Afinal, o código foi aprovado por mais de 400 votos na Câmara Federal e 59 votos no Senado, o que demonstra uma articulação política poderosa unindo forças opostas. Teve, afinal, uma presidente sem projeto para o Brasil em nenhum setor: pior, o projeto do seu partido, o PT (a chamada “Nova Matriz Macroeconômica”), não era o dela, que ficava vagando ao sabor das circunstâncias. Teve, além disso, ONGs e MPs, com todo seu lobby no Congresso, impotentes diante de uma tamanha vontade política de aprovar logo a lei e anistiar os infratores.
O prejudicado, o grande prejudicado, é o ambiente e, por conseguinte, o povo, as presentes e futuras gerações. O código de 1965 era sucinto e continha os princípios básicos da proteção ambiental no Brasil. O novo código tem um número de comandos bem maior (o dobro) mas seu comando principal é este: entre a propriedade privada e o interesse público na preservação dos processos ecológicos vamos privilegiar o primeiro, vamos privilegiar quem produz, quem planta, coitados desses proprietários conscientes que só querem o bem do Brasil e jamais pensam no próprio bolso… Os ecossistemas que se restaurem sozinhos, sem necessidade de atuação da mão pesada do Estado. A propósito, gosto sempre de citar certo manual de saneamento urbano publicado em 1940 por um professor de Medicina carioca que diz que o melhor destino do lixo é simplesmente jogá-lo ao mar (!). Este seria o “processo mais econômico e mais prático para o lixo” (!!). Quem sabe vamos voltar a estes tempos e a estas ideias…
*professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp de Presidente Prudente.